Por Joel Rufino dos
Santos
Dois
de julho de 1823. Recôncavo da Bahia. Dez horas da manhã um pretinho entra
correndo no acampamento brasileiro de Pirajá:
– Os
portugas foram embora! Os portugas foram embora!
O próprio comandante brasileiro, Francisco de Lima, o acalmou:
– Calma, rapaz. Fale com calma.
Em suma, o Madeira Podre reconhecera
a derrota. Patinhando na lama, os soldados portugueses embarcavam na Ribeira.
Trezentos e vinte e três anos de dominação fitavam pela última vez a torre do
Bonfim.
Então, o exército de libertação da
Bahia, que era o do Brasil, se pôs em marcha para ocupar Salvador. Não era
bonito, embora alegre. Os homens mancando, descalços. Para fazer os 10
quilômetros do acampamento até a capital nossos soldados gastaram cinco horas.
Quem não podia andar vinha nas costas do amigo. Na Lapinha encontraram as
janelas enfeitadas com colchas multicores de damasco. Batiam tambores. Em
frente do convento da Soledade passaram sob um arco de flores-do-campo tecido
pelas irmãs, que enxugavam o choro nos hábitos. Muitas não viam o sol havia 30
anos.
O exército tinha centenas de
mulheres. Iam atrás, sorridentes. Só uma ia na frente, ao lado do comandante. As
lágrimas de Maria Quitéria de Jesus
molhavam suas medalhas de lata.
Alto-mar. Passaram dois meses, curtos
e cheios. O cenário agora é outro. Não se vê terra, só céu e mar. Maria não tem
tempo de espiar o mar, como muda de cor dez, 15 vezes num dia só. Passa todo o
tempo no camarote aprendendo a ler. Ler e escrever, que terá de assinar o nome
diante do imperador. Ela se esforça, tenta de novo, os garranchos enchem a
folha. Uma costela dói: pontapé de um alferes português no combate de Itapoã. Enxuga
a testa com o punho verde.
Sete de setembro. Paço Imperial, Rio
de Janeiro. Maria nunca pensou que houvesse no mundo tanta gente elegante.
Pedro caminha até a heroína, espeta na sua blusa a insígnia de Cavaleiro da
Ordem Imperial. Os dois têm quase a mesma altura. Ele muito branco, ela
queimada. Ele disfarça o sotaque lusitano:
“Querendo conceder a Dona Maria
Quitéria de Jesus um distintivo que assinale os serviços militares que, com
denodo raro entre as mais do seu sexo, prestara à Causa da Independência deste
Império, hei por bem permitir-lhe o uso da insígnia da Ordem Imperial do
Cruzeiro.”
1824.
Perto do Natal. Fazenda da Agulha, São José das Itapororocas, interior da
Bahia. A heroína foi pedir perdão ao pai por ter fugido de casa. Dois anos
atrás, quando a guerra pela Independência começou, ela esperou a noite, vestiu
a roupa do cunhado, pulou a janela e cavalgou 80 quilômetros para se alistar.
Acabou no Regimento dos Periquitos, pelos punhos verdes, matou, foi ferida e
namorou, sempre disfarçada. Quando o exército libertador entrou em Salvador,
nos calcanhares do Madeira de Melo (o Madeira Podre), já se sabia que soldado
Medeiros nascera mulher. O pai não quis vê-la.
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