Um jovem modelar
“Posso ser pobre e desgraçado,
mas nunca serei um mentiroso!”
Era um rapaz de uns dezoitos anos,
simpático, com uma expressão terrivelmente triste, vestido com uma roupa velha,
mas bem passadinha, limpinha, remendada. Via-se que tinha nascido em bom berço.
Parecia uma criatura portadora de uma precoce tragédia, mas o que sempre trazia
no bolso, com toda a certeza, era uma carta.
Tocava a
campanhia e, quando abriam a porta, estendia a carta:
– Entregue-a à dona da casa, por favor.
– Da parte
de quem?
– Ela sabe.
Entregue-lhe.
O envelope estava sempre limpinho. Renovava-o
todos os dias. A carta tornava a escrevê-la várias vezes por semana. E a carta
dizia assim: “Ajude-me. Tenho um
irmãozinho no Hospital das Clínicas e
minha mãe no Pronto Socorro”.
Partia a
alma. Ademais a carta estava bem escrita, com bom estilo, sem erros de
ortografia. Brotava das suas linhas queixumes de dolorosa sinceridade.
Geralmente, a dona da casa, quando via o rapaz limpinho, digno,
apresentável, era tomada de surpresa e o fazia entrar.
O jovem, com o chapéu numa mão e um
lenço na outra, reforçava os conceitos da carta. Primeiramente, repetia:
– Tenho um irmãozinho no Hospital das Clínicas
e minha mãe no Pronto Socorro.
E a seguir
acrescentava:
– Tinha começado a carreira de
advocacia, mas tive que abandoná-la. Que desgraça, senhora, que desgraça! Ainda
não tenho vinte anos e a dor já bateu à minha porta. A senhora não imagina como
sou desgraçado!
Dizia com toda a lentidão, as
palavras, para que não ficasse na garganta nenhum “s”, nenhum “l”. O importante
era impressionar como uma pessoa culta.
Até que um dia a vaca virou touro. A
dona da casa meteu a cara na porta, olhou-o de cima a baixo, e metralhou-o:
– Não tem vergonha, jovem e vendendo
saúde, andar pedindo esmola com um papel cheio de mentiras?
O rapaz
armou o peito e olhou-a fixamente:
– A senhora me ofende no mais fundo
dos meus sentimentos... porque posso ser pobre e desgraçado... porque é
possível que não goste de trabalhar... mas mentiroso não sou!
Disse assim,
deu meia volta e foi embora. A mulher ficou perplexa e chamou-o:
– Venha, conte-me... A gente nunca,
sabe, compreende-me... Jure que disse a pura verdade!
– Juro-lhe pela minha mãe e meus
irmãozinhos que digo a verdade. Que morram, se minto!
E não mentia. No Pronto Socorro, a
mãe era chefe dos escritórios (Classe O, com penacho) e no Hospital das
Clínicas tinha até dois irmãos, que tiravam um bom ordenado, um como porteiro e
outro como eletricista, os quais, com as gorjetas e biscates, já tinham
comprado automóvel e apartamento em prestações.
O golpe dos baralhos
Um malandro internacional chegou, há
tempos, ao Rio, a bordo de um luxuoso navio, procedente da Europa. Trazia
muitas malas com roupas de uso. Mas, revistando outras de aspecto mais velho e
surrado, os guardas aduaneiros encontraram uma grande partida de baralhos.
Tratava-se evidentemente de um contrabando, pois o passageiro não acusar a
existência daquela mercadoria incorporada à sua bagagem e recusava-se, ao mesmo
tempo, a pagar o imposto, aliás, pesadíssimo, que incide sobre material de
jogo. Em resumo: os baralhos foram apreendidos e, depois do competente processo
fiscal, foram vendidos em
leilão. Comprou a valiosa partida um esperto negociante, que
arrematou a mercadoria por vinte mil cruzeiros*, esperando revendê-la com um
lucro fabuloso.
No dia seguinte, aparentando uma
calma irritante, entrou no estabelecimento comercial do comprador dos baralhos,
o seu primitivo dono. Queria falar em particular com o comerciante, pois
desejava fazer-lhe uma vantajosa proposta.
– Quero comprar toda a partida de
baralhos.
– Muito bem. E quanto me oferece?
– Dez mil cruzeiros.
– O senhor está maluco? Pois eu
paguei vinte mil cruzeiros por esses baralhos e evidentemente valem muito
mais...
– É um exagero de sua parte. Esses
baralhos não valem nada. Sou muito camarada oferecendo-lhe dez mil cruzeiros
para evitar-lhe um prejuízo maior...
– Como não vale nada, se não são de
primeira qualidade?...
– Não valem nada, porque estão incompletos... Faltam-lhes os “reis de
copas”, que estão comigo.
O comerciante, depois de abrir vários
pacotes, verificou que, de fato, estavam todos desfalcados de uma carta que era
exatamente o “rei de copas”.
Meia hora depois, o esperto
negociante resolvia aceitar a proposta que lhe fazia o contrabandista,
vendendo-lhe os baralhos pelos dez mil cruzeiros, convencido de que, nessa
altura, estava fazendo um ótimo negócio...
*Cruzeiro era a moeda dos
anos 50.
O supérfluo intermediário
José Benedito passara a noite em claro. Estava
preocupadíssimo com um compromisso financeiro inadiável. Era um título
bancário, com vencimento para aquele dia, mas o pior é que ele estava sem
vintém. Pela manhã, extenuado, tomou um banho, para se refazer, vestiu-se e
encheu-se de coragem para ir bater à porta de seu amigo Jerônimo, milionário e
bem instalado na vida, o qual bem podia desapertá-lo.
– Vim cedo te procurar,
prevalecendo-me da nossa velha amizade. E vim para tratar de um assunto muito
desagradável e urgente: preciso que me emprestes, até sábado, dez mil
cruzeiros. Pode ser ou está difícil?
– Evidentemente está difícil, mas os
amigos são para sanar estas dificuldades. No momento, não tenho dez mil
cruzeiros em caixa, mas te darei um cheque, que é a mesma coisa.
Assim, rapidamente, José Benedito foi
atendido, retirou-se contente e agradecido, para ir saldar imediatamente o seu
débito no banco.
Na sexta-feira, porém, Benedito
estava novamente inquieto. É que ele promete devolver no sábado, a seu bom
amigo Jerônimo, os dez mil cruzeiros, que lhe emprestara com tão boa vontade, e
a verdade é que ele não tinha o dinheiro para devolver. E ele não podia faltar
à sua palavra, nem desiludir um amigo de tantos anos, que o tinha atendido com
tanta presteza e solicitude. No sábado, depois de uma noite atribulada, tomou
pela manhã uma resolução heróica: foi à casa de outro amigo expondo-lhe a sua
aflitiva situação e solicitando-lhe dez mil cruzeiros emprestados, impondo-se a
condição de devolvê-lo até a próxima quarta-feira. Atendido com incrível boa vontade pelo amigo,
José Benedito correu como uma flecha para pagar os dez mil cruzeiros que devia
a Jerônimo.
Na quarta-feira seguinte não
dispondo de numerário para resgatar a dívida que contraíra com o outro amigo, Amarildo,
José Benedito teve que voltar a pedir o dinheiro a Jerônimo. Mas no sábado
seguinte, para pagar a Jerônimo, teve que recorrer outra vez a Amarildo.
Durante meses, José Benedito viveu nessa agonia, correndo, aos sábados, ao
escritório de Amarildo para pagar a Jerônimo e, às quartas-feiras, batendo à
porta de Jerônimo para liquidar a dívida com Amarildo.
Numa festa da sociedade, numa noite,
por acaso, José Benedito encontrou os dois amigos. Chamou-os à parte e
revelou-lhes toda a sua tragédia:
– Todos os sábados vou apanhar dez contos com
você, Amarildo, para pagar a você, Jerônimo; e todas as quartas vou buscar dez
contos com você, Jerônimo, para pagar os dez contos devidos a você, Amarildo.
Trata-se, como estão vendo, de uma dívida entre vocês dois e da qual eu sou
simples intermediário, sem tirar nenhum proveito. Refletindo melhor sobre este
assunto, resolvi retirar-me deste negócio, livre e desembaraçado, de maneira
que, daqui por diante, vocês podem continuar a fazer esses pagamentos, às
quartas e sábados, sem a minha inútil intervenção.
E dizendo isso, despediu-se
afetuosamente dos amigos embasbacados para nunca mais aparecer...
(Histórias do livro “O Barão de Itararé apresenta o seu
Almanhaque,
de1955” )
de
O Barão por Edgar Vasques
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