Bem, meu caro, desculpe o mau jeito – mas você acaba de
morrer num acidente de estrada.
Morreu você e seu carro.
Você é um daqueles caras
recolhidos ao Instituto Médico legal. Você é a nossa manchete de ontem.
Vamos falar com franqueza: nós detestamos dar notícias
tristes.
Todos os fins de semana, após
cada feriado, procuramos nunca chocar as pessoas. O de que nós gostamos mesmo é
de falar da beleza das quaresmeiras, das azáleas e dos plátanos à beira das
estradas.
Somos até um pouco exagerado:
vivemos pedindo aos pedestres que tomem cuidado ao atravessar as ruas e
avenidas e não nos cansamos de alertar os motoristas dentro e fora da cidade.
Sabe, em cada rua, preferencial ou não, há sempre uma criança ou velhinho. Essa
gente requer uma atenção toda especial.
Fazemos isso não só nos feriados e fins de semana. Fazemos
isso todos os dias.
Nesta casa existem dois ou três
otimistas que acreditam no impossível: que um belo dia ninguém morrerá nas
estradas, nem nas ruas. É claro que, quando isso acontecer, essa será nossa
manchete.
Até lá nós vamos dando avisos,
conselhos e recomendações. E nem assim, meu caro, você se livrou de morrer.
Não precisa nos dar nenhuma explicação.
Apenas queremos saber que desculpa
você vai dar à sua mulher (no hospital). Ou a seus filhos (órfãos). É melhor
você não falar nada. Eles não estão querendo desculpas.
Eles estão querendo você.
É inútil falar dos freios, da
fechada, da lombada, da ultrapassagem, do sono, dos dois dedos de caipirinha,
da pressa, dos compromissos, do almoço com hora marcada, da falta de
sinalização da estrada, da ausência de policiamento, da falta de estabilidade
do automóvel, do defeito do velocímetro.
Nós o estávamos esperando de volta, e você falhou.
Não foi por falta de avisar.
Sempre, em todos os instantes, lhe dissemos que todo carro é uma arma. Uma arma
que não perdoa desaforo.
Agora estamos aqui com seu
prontuário de bom motorista, sem saber o que fazer com ele. Mas isto não é
vantagem. Todos nós somos bons motoristas, os melhores do mundo, e disso nos
gabamos enquanto lemos (porque estamos vivos) a relação dos mortos de ontem. Enquanto
lemos a história de sua morte, a morte de um ex-bom motorista.
Veja, você acaba de sujar de sangue o seu prontuário.
Você acaba de jogar fora a sua vida. Você não tem nenhuma
desculpa. Você está morto.
E nem adianta repetir, mais uma
vez, que todo carro é uma arma. Uma arma que não aguenta desaforo.
Você, meu caro, não acreditava nestas coisas.
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(Lourenço Diaféria.
“Um gato na terra do tamborim”,
São Paulo, Ática,
1998)
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