Luís Anton del Olmet*
Ontem decidi nunca mais mentir.
Acordei muito cedo, ansioso, por ir para meu trabalho. Na rua esbarrei com um amigo.
– Molestei-te?
– Bastante.
– És muito amável.
Pouco depois se aproximou de mim um mendigo.
– Uma esmola, pelo amor de Deus.
Eu lhe respondi claramente:
– Não quero. Poderia
dizer-lhe que não tenho trocado, simplesmente que sou tão pobre quanto o
senhor. Mas seria mentir. Tenho dinheiro. O que acontece é que não tenho
vontade lhe dar esmola.
O pedinte ficou estupefato.
Depois o vi levantar seu garrote, e para não andar às
pauladas com um barbudo, tive que fugir.
E por fim me vejo em minha repartição. E vejo-me depois ante
um conflito enorme.
– Resolvi favoravelmente aquela informação de que falamos. Que lhe parece?
A pergunta não pode ser mais
terminante. E é meu chefe quem exige resposta. E palavra, eu tenho um pobre
conceito inconfessado de meu chefe. E como decidi não mentir, exclamo:
– Parece-me muito mal. Conheço o caso. Eu teria
resolvido em contrário.
O chefe tira os óculos, consternado.
– Que diz o senhor? Ficou
maluco? Atrever-se a dizer-me!... É um insolente, para não o qualificar pior.
Retiro-me. Em minha seção
mantendo com meus colegas várias discussões e conquisto bruscas antipatias.
Há em minha seção uma espécie de
açoite popular, que diz chistes. E naturalmente, perpetrou um, e como é lógico,
abstive-me de rir. Alguém, assombrado, inquiriu:
– Ficaste sério... Não te fez rir a pilheria?
– Exagerando minha sinceridade, choraria. O cretinismo
tem a virtude de tornar-se indiferente.
Há em minha seção um grã-fino. E
o presumido veio esta manhã estreando uma gravata e um colete. Dirigem-lhe
elogios. Eu estou calado. E alguém se aventura a pedir minha opinião.
– Parece um macaco fantasiado.
Há em minha seção um sedutor.
Está contando uma bravata que cheira, como todas as suas, a embuste. Os demais,
para lhe serem agradáveis, fingem acreditar. E eu, friamente, no uso de meu
completo direito, movido por um sadio e exemplar estímulo de justiça, exclamo
interrompendo-o:
– Tudo isso que você está
contando é um sainete ridículo. Você não conquistou nem a sua porteira.
E não será preciso demonstrar
como aquela repartição onde tão bons amigos tive, se transformou em cova de
adversários.
Saio, volto à minha casa e
almoço. A senhoria, mulher amável e comunicativa, aproxima-se de mim sorrindo e
pergunta-me, como sempre:
– Gostou da comida?
– Achei-a simplesmente
horrível. Nunca me atrevi a dizer-lho, mas é verdade. Simplesmente detestável.
– Pois dê o fora quando quiser. Grosseirão!
Para não brigar com a senhoria, criadas e demais fúrias,
saio à rua.
No bonde um cidadão pisa-me o
calinho. Antigamente, quando eu era um consumado embusteiro, responderia ao seu
“queira desculpar” com um “de nada”. Mas como sou um homem franco replico:
– Não enxerga, não? Para que tem olhos na cara?
E então o parceiro fica por conta e diz-me uma dúzia de
desaforos.
Entro na livraria. Um autor amigo aproxima-se e faz-me uma
pergunta insolente:
– Que tal achou meu ultimo romance?
– Que sei eu!... É uma
imbecilidade: sabe o amigo? Uma imbecilidade inofensiva. Por exemplo, as do
senhor seu pai...
E o escritor pôs-se muito sério e exclamou com indignações
sinceras:
– Desde já fique sabendo que vou mandar-lhe meus
padrinhos. É duelo de morte. À pistola!
Vou a um café e me disponho a
escrever duas cartas para comuns amigos que hão-de servir-me como padrinhos. O
empregado me pergunta, solicito:
– Café?
– Quer dizer... chicória!
Trazem-me veneno e material para
escrever. Mas ao iniciar minha primeira carta detenho-me perplexo. Permitiria
minha sinceridade uma carta de fórmula embusteira como todas, cheia de
hipocrisia? E escrevo: “Senhor alheio a qualquer consideração ou respeito:
pouco entenderá destas questões, mas como não tenho melhor pessoa de que possa
lançar mão, peço-lhe se dê à satisfação de figurar como padrinho num duelo
que”... E prossigo nestes termos. Por fim termino assim: “Agradeça-me esta
escolha, porque assim verá seu nome nos jornais. Toca-lhe a mão seu conhecido,
que não o grama”...
Depois vou à casa de minha noiva.
– Amas-me?
– Um pouco.
– Só um pouco?
– Só. Tens alguns defeitos incorrigíveis.
Meu acento é lhano, confidencial.
Mas a pequena, que tem da sinceridade um conceito arbitrário, desata a chorar
convulsivamente. Sua mãe acode, rancorosa e trágica:
– Que foi?
– Apenas sua filha é uma histérica.
– Uma histérica? É você um paspalhão.
– E a senhora um estafermo. Saiba-o de uma vez.
Vou ao teatro. Como a peça me parece ruim, bato os pés.
Acabo na delegacia.
E à noite, quando por fim me
soltam e posso chegar a casa, recolho-me a meditar, e exclamo convencido:
– É preciso mentir. Talvez a existência não seja outra
coisa senão uma humilde e piedosa mentira.
(Publicado na Folha
da Manhã, domingo, 21 de agosto de 1949)
*Luis Antón del Olmet
*Luis Antón del Olmet
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