Roberval, estranho moço das tardes do
bar. Não falava: bebia. Não ficava bêbado, e, se ficava, ninguém via. Só
escutava sem sorrir as histórias que tinham graça, sem se emocionar com a morte
do nosso Jorge garçom, ontem, quando ele estava embaixo do chuveiro. O
Fluminense perdeu um torcedor doente.
Roberval nem era Flamengo, nem Bangu,
nem Olaria. Não gostava de futebol. Gostava do seu conhaque lento e de uma lida
nas colunas de política do Jornal do Brasil.
Também não comentava sobre ela.
Uma dia, Roberval se abriu com
Augusto e contou que estava apaixonado por uma barata. Kafka, de novo? Roberval
nada sabia sobre Kafka. Resolveu contar por contar ou estava em depressão
depois que “ela” o deixara.
Tudo começou de maneira muito
simples: chegou em casa naquele porre que só ele via e sabia. Sentou na
poltrona, botou conhaque no copo e o copo na mesinha. Foi quando a barata se
aproximou, suavemente, junto do copo, subindo e se equilibrando na sua borda,
se espichando para alcançar a superfície do líquido. Provou, bebeu e voltou
para a mesinha olhando para ele. Ficaram nesse namoro até o sono chegar. Quando
acordou, a barata tinha ido embora. Roberval esperou ansiosamente o dia passar
no trabalho. À noite foi ao bar e bebeu o que pôde, sempre olhando o relógio.
Na hora exata do acontecimento que tanto o perturbara, foi para casa, serviu o
conhaque e se debruçou na poltrona. Não demorou, a barata veio vagarosamente e
foi se aproximando do copo. Ele ficou só observando. “Ela” fazia a mesma
ginástica do dia anterior: subiu no copo, alcançou o líquido, bebeu e ficou de
papo para o ar, olhando Roberval. E assim aconteceu durante muitas noites.
O namoro seguia firme quando uma
desconfiança que podemos chamar de ciúme mordeu Roberval: “Será que era a mesma
barata que o visitava todos os dias ou havia inúmeras baratas se revezando para
beber o conhaque do otário?” Tentou descobrir comparando a barata de uma noite
com a de outra. Concluiu que se elas se revezavam não dava para confiar no método
da comparação, pois todas eram rigorosamente iguais. Lá pelas tantas, sentiu-se
enganado e planejou vingança. Quando a barata estivesse bêbada e de pernas para
o ar, iria matá-la com um punhal que ganhara de um amigo nordestino. Não teve
coragem. Deixou que “ela” dormisse e resolveu adiar o plano para o dia
seguinte. E assim fez, mas não a matou com punhal. Esperou que “ela” atingisse
a borda do copo, empurrou-a e deixou que morresse afogada, tapando a boca do
copo com a mão. Mas, quando a amada estava quase morrendo, a bondade de
Roberval falou mais alto. Ele a retirou de dentro do copo, limpou seu corpo com
cotonete e já pensava em fazer respiração boca a boca quando “ela” começou a
mover as patinhas. Só então Roberval percebeu que faltava uma das patinhas,
arrancada na ânsia de salvá-la. Chorou de remorso e adormeceu sem perceber que
a amada havia ido embora.
A noite seguinte foi a mais longa
espera pela amiga quase defunta. Olhava sobre a mesa a patinha decepada, e
perguntou a todos os amigos se barata era como caranguejo cujas patas caem e
outras nascem. Não havia hipótese. Encheu o copo de conhaque, encheu várias
vezes o copo e nada. A noite já ia longe quando percebeu a chegada da amiga que,
capengando, tentava subir a borda do copo. Ele a ajudou e resolveu que para
“ela” seria mais fácil beber no pires. Todas as noites, na mesma hora, a barata
chegava capengando em busca do conhaque, e a certeza de que “ela” era única
enchia de prazer a alma de Roberval. Desde então passou a defender a
honestidade das baratas, e dizia no Vilariño que, ao contrário das mulheres,
todas são honestas. Nós pensávamos que Roberval estava pinel. Não estava: ficou
no dia em que a barata não apareceu mais. Morreu afogado em conhaque sem
ninguém que lhe trouxesse um cotonete para enxugar-lhe as mágoas. Sabe-se que
outras baratas – amigas da amada ausente – visitam-no constantemente no seu
túmulo.
(Do livro “À mesa do
Vilariño”, de Fernando Lobo)
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