Dr. Jacarandá, um “causídico” de fraque, polaina e
monóculo.
Nas notícias de seu falecimento,
ocorrido a 19 de julho de 1948, as quais, por ser ele “uma figura popular da
cidade”, destacaram com foto, seu nome legítimo apareceu divergente. Numas deram-no
como Manuel Vicente Alves Palmeira, noutras como Manuel Vicente Alves, apenas.
Divergência sem nenhuma importância, pois acima de qualquer dos dois prevalecia
a alcunha que ganhou e pela qual todos o tratavam. Era o Doutor Jacarandá, ou
glosando a pronúncia de seu linguajar, o Dotô Jacarandá. Tido e havido como
“causídico” que “impretava hábis córpis”, na “manitenção de possia”, requeria
“sortura” e outros papéis de curso judicial.
Sem “papel passado”, sem ter
penetrado em salas de qualquer aula de Direito, fez-se um autodidata audacioso,
isento a chacotas, a gozações. Sem inibição, sentindo-se “adevogado”, visitava
as varas, os cartórios, os tabelionatos. Trajando fraque preto bastante
surrado, polainas e monóculo ostentava lampeiro um cravo vermelho na lapela e,
logicamente, um anel em que a pedra vermelha alardeava seu “doutorado”.
Percorria com amplo desembaraço o Foro da rua D. Manuel, onde conhecia toda a
gente e até mesmo alguns magistrados. Sempre tratados por ele “sinhô dotô
meretismo”, lhe davam atenção, embora com devidas reservas.
Circulando pelas ruas do Rio, desde
1904, quando aqui chegou vindo das Alagoas, onde nasceu em Palmeiras dos
Índios, no ano de 1873, o preto Doutor Jacarandá, de vestimenta exótica,
cabeleira branca, encarapinhada, com a ajuda de escrivães e funcionários do
Foro, encaminhava papéis de rotina, tirava certidões. Não hesitou, assim, em
avocar o doutorado. Um doutorado de araque, de motu proprio, que ele usava compenetrado, crente de sua validade.
Chegou mesmo a montar um “escriptório” (com placa grafada corretamente) no 1°
andar da rua do Núncio n° 33 onde atendia as “parties”, os seus clientes, dando-lhes
conta da “marcha dos papé”.
Aceitando a galhofa que o cercava,
doutor por achincalhe por convicção, chegou até a participar de carros de
críticas nos préstimos carnavalescos. E foi nestes termos que os alunos da
Escola de Engenharia fizeram-no, por unanimidade, “paraninfo perpétuo”.
Distinção que, cheio de orgulho, desfrutava envaidecido. Do mesmo modo, não
hesitou, em 1922, a
se candidatar deputado e tornar pública sua plataforma na qual destacou que,
sendo “inleito”, defenderia os “direitu das sinhora meretrizias”. Morreu pobre
num leito do Hospital Carlos Chagas, em Marechal Hermes ,
aos 75 anos, e foi sepultado às expensas de seu filho José Januário que, vindo
das Alagoas, lhe deu sepultura condigna no cemitério da estação Ricardo de
Albuquerque.
Fazendo, principalmente, a advocacia criminal,
a designada de “porta de xadrez”, tinha que visitar seus clientes em alguns
distritos policiais e também na Casa de Detenção, o que lhe era permitido sem
direito certo, mas por benevolência. Houve, porém, um diretor da Casa de
Detenção, o dr Meira Lima, que determinou fosse proibida sua entrada naquele
presídio com a prerrogativa que a lei concedia aos advogados verdadeiros, de
fato. A aceitação do “doutorado” de Jacarandá, fora, em consequência,
invalidada.
Não aceitando essa proibição, o
“causídico”, tido e havido como tal, recorreu ao ministro da Justiça que,
prontamente, em despacho lacônico, indeferiu o requerido. Assim, no Diário Oficial de 20 de janeiro de 1928,
página 2.192, era publicado: “Manuel Alves Jacarandá: mantenho o ato do
diretor, baseado no artigo 123 do regulamento em vigor”. Magoado com essa
decisão, dias antes de seu falecimento, confiou-a a um jornalista, que o
visitou no hospital. Nessa ocasião, o repórter, descrevendo sua figura, fixou
assim o Jacarandá: “barba de conselheiro, bigode de comendador e pera de
mosqueteiro”. Ostentava, ainda, mesmo de pijama, o monóculo.
O Globo, 20.07.77, 2°
Caderno.
(Do livro “Meninos,
eu vi”, de Jota Efegê)
Manoel Vicente Alves, o doutor Jacarandá
(1873-1948)
O jornalista Orestes Barbosa,
escrevendo em “A Folha”, de 31 de março de 1921, referiu-se ao rábula negro
Manoel Vicente Alves, o dr. Jacarandá, especializado em modestas causas de
despejo:
“Alto, metido no seu ʽfrackʼ
empoeirado e na sua ʽjacaʼ à antiga, ostentando o seu ʽcavaignacʼ grisalho, que
parece feito de arame, lá vai quase sempre, vagarosamente, o preto, afinal de
contas, inteligente, que a cidade inteira conhece”.
O escritor Carlos Didier, biografando Orestes Barbosa,
evocou a sua figura folclórica.
“O negro Manoel Vicente Alves, o
doutor Jacarandá, nasceu em Palmeira dos Índios e cresceu em São Miguel dos Campos,
Alagoas. Cultiva um cavanhaque repartido em duas pontas. Usa monóculo, fraque
velho e cravo vermelho na lapela. Debaixo do braço, transporta uma pasta cheia
de papéis. Foi dono de botequim na esquina das ruas Evaristo da Veiga e Senador
Dantas.
Na primeira década do século,
passou a dedicar-se à advocacia e, em suas causas, maltratava o vernáculo. Para
ele, juiz é “sinhô dotô meretismo”. E assim por diante: “atendê as parties”, “marcha
dos papé”, “impetrá hábis corpis” e “manutenção de póssia”.
Quando encontrou o doutor
Jacarandá, em 1920, o jornalista Orestes Barbosa, a serviço de “A Folha”,
seguiu a recomendação de Olavo Bilac: não zombou de seu modo de falar.
Entrevistou-o no recinto do
Tribunal do Júri, durante o julgamento do tenente Arthur Guedes de Abreu, em
cuja defesa atuaram Evaristo de Moares e Eliseu César.
Ao perguntar pela previsão do
resultado, em 21 de julho de 1920, o jornalista apenas ironizou a lógica do
causídico popular:
− Que pensa do “veredictum”?
− Não se pode dizer nada, quem
resolve é o conselho de sentença − afirmou luminosamente o dr. Jacarandá.
O velho rábula contou ao repórter como se tornou advogado.
− Eu fui procurado por um homem
que não sabia como receber a quantia de 700$000. Eu achei que aquilo devia ser
fácil e, atendendo ao legítimo direito do meu primeiro constituinte, tratei da
causa e consegui vencer.
− Há quantos anos?
− Há 14 anos. Daí para cá, tenho tratado de inúmeras causas
e quase sempre com êxito.
− Qual a sua especialidade?
− Minha especialidade é o
despejo. Eu esqueci de apresentar há pouco, que essa minha primeira causa ainda
não acabou. Porque o devedor tem pago aos poucos e ainda ontem o meu
constituinte recebeu " “alguma coisa”.
− Mas, há 14 anos?
− Sim, senhor. Há 14 anos.
Três anos mais tarde − escreveu Carlos...
Dr. Jacarandá atendendo uma cliente
Seu escritório de advocacia
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