Por Celito De Grandi
A capital gaúcha tem uma população ao
redor de 70 mil habitantes no primeiro ano do século 20. Começa uma fase de
industrialização na cidade. E de transformações em sua estrutura social.
Arraial dos
Navegantes, Rua do Prado, n° 3. Endereço de Ottilia e Christiano Schimpf.
Ele é russo, marceneiro de profissão,
tem emprego certo nas oficinas de Germano Steigleder Sobrinho, instaladas na
Voluntários da Pátria. Na mesma rua, Franklin Bernardes tem uma loja de tecidos
e miudezas.
Encantado
por Ottilia, Franklin a assedia.
Por volta das 15h30min do dia 2 de
julho de 1901, Ottilia mata Franklin com dois tiros de revólver, “em defesa da
honra”. Na sala de sua casa.
Com as roupas rasgadas, sai em
disparada pela porta dos fundos, grita por socorro, pede que avisem o marido.
Não demora e, antes de ser
encontrado, o marido de Ottilia aparece na Rua do Prado. Vê a vizinha com as mãos
na cabeça, cara de espanto, e pergunta:
- O
que aconteceu?
Ela aponta
para a casa dele.
- A
Ottília matou um homem.
Natural de Rio Pardo, de origem
alemã, casada há 11 anos, Ottilia, 31 anos, tem um filho de oito anos.
Franklin, 29 anos, casado não faz muito, tem um filho de poucos meses. A viúva
veio de uma família tradicional de Vacaria.
À polícia,
Otilia revela detalhes.
Era assediada havia um ano. Nunca
teve coragem de contar ao marido, porque ambos deviam favores a Franklin. Eram
amigos. Até se hospedaram na casa dele, durante certo tempo.
Hoje, ela disse não mais uma vez. E
ele ameaçou. Se não aceitasse na cama, ele mataria Christiano. Ela apanhou o
revólver na gaveta de um aparador e atirou.
Porto Alegre se comove. Ottilia é um
exemplo. Morre se preciso para defender o lar imaculado. E mata, também, se
necessário.
Algumas esposas se mobilizam, é feita
uma subscrição. Afinal, deve-se um mimo às virtudes de dona Ottilia. Uma santa.
O dramaturgo porto-alegrense João
Alves Torres, sensibilizado pela honradez feminina, escreve uma peça de teatro,
Ultraje.
Os investigadores não têm
dificuldades para saber, com vizinhos e conhecidos, da intimidade de Ottilia e
Franklin. Christiano viajava muito pela empresa, Franklin a visitava em casa,
sempre que estava só, ou ela o ia buscar na loja. Franklin ainda era solteiro
quando tudo começou, havia dois anos.
Ottilia não suporta o interrogatório
e confessa. Sim, Franklin era seu amante. E justifica: porque não o queria
mais, fez os disparos. A cidade, agora perturbada, volta-se contra ela. Todos
estão solidários com Christiano. As vizinhas o consolam.
A polícia também descobre que, no dia
anterior à morte de Franklin, o marido de Ottilia havia comprado um revólver.
Por quê?
É o capítulo final.
Se todos na vizinhança sabiam, um dia
Christiano também haveria de saber e Ottilia decide preveni-lo de que está
sendo assediada por Franklin e que resiste, mas já não sabe o que fazer.
E arma a trama: vai avisar o dia e
hora em que ele há de aparecer outra vez.
Assim foi.
Christiano deixa o emprego naquela
tarde, esconde-se no quarto, a porta para a sala entreaberta. E quando Franklin
entra e vai para os braços de Ottilia com a intenção de beijá-la, ele aperta o
gatilho duas vezes.
Em alemão, ela sussurra ao pé do
ouvido de Christiano, quando são levados pelos policiais para prestar depoimento,
ainda naquela tarde:
- Vou assumir.
Era a culpada de tudo, queria ser
presa e se penitenciar.
Ele ficou contrariado.
E, num novo depoimento, a honra fala
mais alto. Ele confessa:
- Fui eu quem o matou.
No primeiro julgamento, Christiano e
Ottilia são absolvidos. Há recurso da acusação. E o novo júri popular mantém a
inocência do marido, mas Ottilia é condenada a quatro anos de prisão, por
prevaricar.
Na sociedade machista da época, a
decisão se justifica: nada era mais importante do que lavar a honra masculina.
João Alves Torres reescreve a peça de
teatro. Uma nova história, com novo enredo e novo título: A vítima da serpente.
*****
Este texto sai no
editorial de polícia de Zero Hora, todos os domingos
na coluna Boletim de Ocorrência, de Celito De
Grandi.
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