João Francisco dos Santos nasceu em
25 de fevereiro de 1900 na cidade de Glória de Goitá em Pernambuco. Foi
dado por sua mãe a um senhor ainda menino e pouco depois fugiu com uma mulher
que lhe ofereceu um emprego no Rio de Janeiro. Passou a maior parte de sua vida
nas ruas boêmias da Lapa.
Negro elegante, pobre limpo, célebre
marginal, valentão, artista, homossexual com orgulho, analfabeto inteligente,
capoeirista e carnavalesco. Assim foi definido uma das personalidades mais
marcantes e famosas que a Ilha Grande já teve.
João ficou conhecido como Madame
Satã, porque ganhou um concurso de fantasias em 1938 fantasiado de morcego com
muitas lantejoulas que lembrava uma personagem do filme Madame Satã (filme
exibido na época). Algumas semanas após o baile de carnaval do Teatro da
República, João e seus amigos gays foram até o Passeio Público (Centro do Rio)
onde sempre se reuniam para as “prosas”, quando foram abordados por policiais e
levados à delegacia.
Chegando lá, o policial perguntou a
João qual era o seu apelido e com medo de alguma represália, João (conhecido
como malandro) não disse qual era o seu verdadeiro apelido. Por coincidência, o
policial estava no baile de carnaval na ocasião que o Malandro ganhou o
concurso e o reconheceu: “Não era você que se fantasiou de Madame Satã e ganhou
o concurso do baile de carnaval este ano?”
E desde então o Malandro da Lapa
passou a ser conhecido como Madame Satã. Após despontar como um dos primeiros
travestis dos palcos brasileiros ganhou fama como valente em escaramuças na
Lapa, principal reduto da boemia e da malandragem carioca nos anos 30, quase
sempre resistindo à prisão por autoridades policiais.
Nos anos 40, saía de Madame Satã, uma
referência à personagem que ele encarnava travestido como cantor e ator, e que
lhe valeu o título de Rainha do Carnaval por três vezes.
Madame Satã
faleceu em 1976.
Noel Rosa fez uma menção à
homossexualidade de Madame Satã*, histórico malandro brigão da Lapa que se
travestia, em sua música Mulato Bamba. Milagrosamente, foi num tom bacana, sem
preconceitos:
Mulato Bamba
Esse mulato forte
É do Salgueiro.
Passear no tintureiro*
Passear no tintureiro*
Era o seu esporte.
Já nasceu com sorte
Já nasceu com sorte
E desde pirralho
Vive à custa do baralho,
Nunca viu trabalho.
E quando tira um samba
É novidade,
Quer no morro ou na cidade,
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar
Quer no morro ou na cidade,
Ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar
Vivem a se lamentar
Por saber que ele não quer
Por saber que ele não quer
Se apaixonar por mulher.
O mulato
O mulato
É de fato,
E sabe fazer frente
E sabe fazer frente
A qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
Mas não quer saber de fita
Nem com mulher bonita.
Sei que ele anda agora
Aborrecido
Porque vive perseguido
Sempre e a toda hora.
Ele vai-se embora
Para se livrar
Do feitiço e do azar
Das morenas de lá.
Eu sei que o morro inteiro
Porque vive perseguido
Sempre e a toda hora.
Ele vai-se embora
Para se livrar
Do feitiço e do azar
Das morenas de lá.
Eu sei que o morro inteiro
Vai sentir
Quando o mulato partir
Dando adeus para o Salgueiro.
As morenas vão chorar
E pedir pra ele voltar.
Ele então diz com desdém:
“Quem tudo quer... nada tem.”
Quando o mulato partir
Dando adeus para o Salgueiro.
As morenas vão chorar
E pedir pra ele voltar.
Ele então diz com desdém:
“Quem tudo quer... nada tem.”
* Satã, que só anos mais tarde
passaria a usar o Madame antes do
nome, já famoso como travesti e desfilante de concursos de fantasias, refere-se
à amizade com Noel em seu livro Memórias
de Madame Satã (pagina 17).
* Tintureiro, carro
de polícia para transporte de presos. O camburão da época.
Ainda Madame Satã
Madame Satã real tornou-se conhecido
no Brasil inteiro após uma entrevista para o semanário “Pasquim”, em 1971, que o
saudou como “a verdadeira contracultura brasileira, mais autêntico e muito mais
sofisticado do que Jean Genet”, entre outros exageros e elogios, a entrevista
em si é um capítulo à parte na história da malandragem, pois permite ver em ação
a singularidade de um modo de pensar e agir. Veja como Satã responde às
perguntas em alguns trechos:
Pasquim: - Mas
você não deu um tiro no guarda?
Satã: - Não,
o revólver é que disparou na minha mão. Casualmente. (...)
Pasquim: - Teve uma vez que você deu
uma navalhada na traseira de um sargento. Como é que foi essa história?
Satã: - Eu não dei navalhada na
traseira do sargento não (...) parece que ele passou por uma cerca de arame
farpado, sei lá, e se rasgou todo.
Pasquim: - Você
ainda briga hoje, ainda tem energia?
Satã: -
Brigar eu não brigo porque nunca briguei (...)
Pasquim: - Em
quantas brigas você calcula que tenha entrado?
Satã: - Ah,
que eu não fui preso, deve ter umas três mil.
Ao todo, João Francisco contabilizou
27 anos e oito meses de cadeia, 29 processos, 3 homicídios e cerca de 3 mil
brigas. Ágil lutador de capoeira e mestre no manuseio da navalha – contam que
ele sempre trazia uma presa na sola do sapato –, Madame Satã só recorria ao
revólver em situações extremas, a exemplo da vez em que desfechou um tiro num
soldado, na esquina da Rua do Lavradio com a Avenida Mem de Sá. Na famosa
entrevista concedida ao histórico tablóide O Pasquim, em 1971, com seu deboche
habitual o malandro afirmou ter sido preso injustamente, alegando que a arma
disparara de forma casual. “A bala fez o buraco, quem matou foi Deus”, afirmou.
Dizia que não brigava, se defendia.
A briga com o sambista Geraldo Pereira
Satã: - Não, eu fui acusado de
ter matado o falecido compositor Geraldo Pereira com um soco. Mas o caso foi o
seguinte: eu entrei no Capela e estava sentado tomando um chope. Ele chegou com
uma amante dele (ainda vive essa mulher), pediu dois chopes e sentou ao meu
lado. Aí tomou uns goles do chope dele e cismou que eu tinha que tomar o chope
dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: “olha,
esse copo é meu”. Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então eu peguei meu copo e levei pra
minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos,
uma porção de palavras obicênias (sic), eu não sei nem dizer essas coisas. Aí
eu perdi a paciência, dei um soco nele, que caiu com a cabeça no meio-fio e
morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque ele foi pra assistência
vivo. (...)
Figura lendária da noite carioca, o grande Madame Satã. Belo texto, obrigado por postar.
ResponderExcluirMadame Satã realmente fez parte dos que viviam em Ilha Grande. Eu sou de Angra e desde pequena, lembro de meus tios que moravam na Ilha Grande e Abraão, contando que muitas vezes os presos que fugiam do presídio, passavam correndo pelo quintal. E ouvia o nome de madame Satã, que fez várias fugas, e depois quando capturado, voltava de novo para o presídio. Era sua praticamente sua moradia Aliás, ele amava Ilha Grande. Morreu tão esquecido em um hospital.
ResponderExcluirFigura lendária do Rio de Janeiro, principalmente da Lapa. Nunca perdeu uma briga na mão.
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