sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O mundo é um moinho



Abaixo, Cartola por Loredano.


O mundo é um moinho

Ainda é cedo, amor,
Mal começaste a conhecer a vida,
Já anuncias a hora de partida,
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar.

Presta atenção, querida,
Embora eu saiba que estás resolvida,
Em cada esquina cai um pouco a tua vida,
Em pouco tempo não serás mais o que és.

Ouça-me bem, amor,
Presta atenção, o mundo é um moinho,
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho,
Vai reduzir as ilusões a pó.

Presta atenção, querida,
Em cada amor tu herdarás só o cinismo,
Quando notares estás à beira do abismo,
Abismo que cavaste com teus pés.

P.S. Cuidado na letra, onde diz:

Presta atenção, o mundo é um moinho,
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho,
Vai reduzir as ilusões a pó.

Não são os sonhos que são mesquinhos, e mesquinho, inclusive, está no singular, pois se refere a moinho, ele, sim, é que reduz ilusões da vida a pó.

*****

“O mundo é um moinho” talvez seja uma das canções mais bonitas já feitas no Brasil. É de autoria de Cartola, que, morando na favela, fez poesia da melhor qualidade e compôs músicas em que melancolia e força lírica formam um par indissociável.

Na primeira estrofe da letra, a forma “ainda é cedo” tem o sabor de uma réplica, não é mesmo? É como se pressupusesse que algo foi dito antes. Afinal, trata-se quase de uma frase padronizada, usada em quase cem por cento das vezes em que uma visita diz que vai embora. Nós, educadamente, replicamos: Ainda é cedo. Diríamos então que já de início a letra pressupõe um interlocutor, indicado ao longo do texto com vocativos: “Ainda é cedo, amor,”; “preste atenção, querida,”; “Ouça-me bem, amor,”. A julgar pelo “querida”, pelo “resolvida”, trata-se de uma mulher. Não ouviremos em nenhum momento a voz dessa mulher, pois, se isso acontecesse, teríamos um diálogo, e a forma da canção lírica poderia resvalar para uma forma dramatizada, quase teatral.

A repetição enfática dos vocativos acaba por indicar o empenho com que se busca prender a atenção da interlocutora, prestes a cair no mundo. Esse empenho é de tal ordem que chega a ter cara de conselho, ou mais do que isso, de sentença, a começar pelo título. O mundo é um moinho é uma espécie de frase sentenciosa, dita por alguém que certamente deve ter perdido um pouco de si mesmo nas pás desse moinho. A experiência acumulada legitima o conselho, daí este ter sabor de profecia, digamos assim, o que é marcado pelo futuro do presente: “não serás mais o que és”, “o mundo (...) vai triturar seus sonhos”, “vai reduzir as ilusões a pó”, “tu herdarás só o cinismo”. Parece mãe rogando praga, não é?

Além do futuro, o presente do indicativo de valor atemporal, comum em provérbios, também é usado: “Em cada esquina cai um pouco a tua vida”. Não é que isso já esteja acontecendo, já que a moça está ainda para partir. No entanto é uma fórmula lapidar, que sintetiza uma verdade. Ninguém passa ileso pelas esquinas da vida. Mas você acha que a letra é no fundo, no fundo, uma praga de mãe (ou de pai, ou de amante?). Pois é, tudo depende do contexto. Formas tão carinhosas como "amor", "querida" de certa maneira embalam, acarinham o interlocutor, do qual, no entanto, não se escondem as verdades desse mundo. Os verbos e expressões ligados à corrosão que a realidade opera sobre os sonhos são bastante violentos: triturar, reduzir a pó, estar à beira do abismo. Mas, como dissemos, a verdade é revelada carinhosamente, se assim podemos dizer. Não só pela ternura dos vocativos, mas pela ternura da melodia mesmo.

A música é doce e melancólica e como que mostra a inutilidade do conselho. Ninguém escapa ao moinho, por mais que queiramos proteger aqueles que amamos. O saldo da aventura pelo mundo é triste: cinismo, desilusão, perda de identidade: “Não serás mais o que és”. O mundo nos aparta de nós mesmos.

Do site ponto.com poesia


Minha conclusão:

Cartola e Dona Zica adotaram Regina como filha que, por sua vez, adotou Nilcemar. Ambas tiveram uma vida correta e decente. A música “O mundo é moinho” é um conselho para alguém que vai sair de casa, que tanto pode ser uma mulher que vai abandonar o seu homem, como uma filha que vai abandonar o lar.

Lendo o livro “Cartola os tempos idos”, de Marília Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho, não há nenhuma referência à vida de sua filha ou de sua neta. A música, totalmente ficcional e filosófica, é mais um conselho para uma mulher (?) tomar cuidado, pois o moinho, que tritura tudo, pode também triturar sonhos mal planejados.

Nilo da Silva Moraes


Observação: em algumas gravações, cantam: vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pómas na capa do disco gravado por Cartola está escrito: vai triturar teus sonhos, tão mesquinho, vai reduzir as ilusões a pó.

Numa frase, o adjetivo mesquinhos concorda com substantivo sonhos; noutra, há uma vírgula depois de sonhos, e tão mesquinho se refere a mundo, que é quem reduz as ilusões a pó.


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