Abaixo, Cartola por Loredano.
O mundo é um moinho
Ainda
é cedo, amor,
Mal
começaste a conhecer a vida,
Já
anuncias a hora de partida,
Sem
saber mesmo o rumo que irás tomar.
Presta
atenção, querida,
Embora
eu saiba que estás resolvida,
Em
cada esquina cai um pouco a tua vida,
Em
pouco tempo não serás mais o que és.
Ouça-me
bem, amor,
Presta
atenção, o mundo é um moinho,
Vai
triturar teus sonhos, tão mesquinho,
Vai
reduzir as ilusões a pó.
Presta
atenção, querida,
Em
cada amor tu herdarás só o cinismo,
Quando
notares estás à beira do abismo,
Abismo
que cavaste com teus pés.
P.S. Cuidado na letra, onde
diz:
Presta atenção, o mundo é um
moinho,
Vai triturar teus sonhos, tão
mesquinho,
Vai reduzir as ilusões a pó.
Não
são os sonhos que são mesquinhos, e mesquinho, inclusive, está no singular, pois se refere
a moinho, ele, sim, é que reduz ilusões da vida a pó.
*****
“O mundo é um moinho” talvez seja
uma das canções mais bonitas já feitas no Brasil. É de autoria de Cartola, que,
morando na favela, fez poesia da melhor qualidade e compôs músicas em que
melancolia e força lírica formam um par indissociável.
Na primeira estrofe da letra, a forma
“ainda é cedo” tem o sabor de uma réplica, não é mesmo? É como se pressupusesse
que algo foi dito antes. Afinal, trata-se quase de uma frase padronizada, usada
em quase cem por cento das vezes em que uma visita diz que vai embora. Nós,
educadamente, replicamos: Ainda é cedo. Diríamos então que já de início a letra
pressupõe um interlocutor, indicado ao longo do texto com vocativos: “Ainda é
cedo, amor,”; “preste atenção, querida,”; “Ouça-me bem, amor,”. A julgar pelo
“querida”, pelo “resolvida”, trata-se de uma mulher. Não ouviremos em nenhum
momento a voz dessa mulher, pois, se isso acontecesse, teríamos um diálogo, e a
forma da canção lírica poderia resvalar para uma forma dramatizada, quase
teatral.
A repetição enfática dos vocativos
acaba por indicar o empenho com que se busca prender a atenção da
interlocutora, prestes a cair no mundo. Esse empenho é de tal ordem que chega a
ter cara de conselho, ou mais do que isso, de sentença, a começar pelo título.
O mundo é um moinho é uma espécie de frase sentenciosa, dita por alguém que
certamente deve ter perdido um pouco de si mesmo nas pás desse moinho. A
experiência acumulada legitima o conselho, daí este ter sabor de profecia,
digamos assim, o que é marcado pelo futuro do presente: “não serás mais o que
és”, “o mundo (...) vai triturar seus sonhos”, “vai reduzir as ilusões a pó”,
“tu herdarás só o cinismo”. Parece mãe rogando praga, não é?
Além do futuro, o presente do indicativo
de valor atemporal, comum em provérbios, também é usado: “Em cada esquina cai
um pouco a tua vida”. Não é que isso já esteja acontecendo, já que a moça está
ainda para partir. No entanto é uma fórmula lapidar, que sintetiza uma verdade.
Ninguém passa ileso pelas esquinas da vida. Mas você acha que a letra é no
fundo, no fundo, uma praga de mãe (ou de pai, ou de amante?). Pois é, tudo
depende do contexto. Formas tão carinhosas como "amor", "querida"
de certa maneira embalam, acarinham o interlocutor, do qual, no entanto, não se
escondem as verdades desse mundo. Os verbos e expressões ligados à corrosão que
a realidade opera sobre os sonhos são bastante violentos: triturar, reduzir a
pó, estar à beira do abismo. Mas, como dissemos, a verdade é revelada
carinhosamente, se assim podemos dizer. Não só pela ternura dos vocativos, mas
pela ternura da melodia mesmo.
A música é doce e melancólica e como
que mostra a inutilidade do conselho. Ninguém escapa ao moinho, por mais que
queiramos proteger aqueles que amamos. O saldo da aventura pelo mundo é triste:
cinismo, desilusão, perda de identidade: “Não serás mais o que és”. O mundo nos
aparta de nós mesmos.
Do site ponto.com
poesia
Minha conclusão:
Cartola e Dona Zica adotaram Regina
como filha que, por sua vez, adotou Nilcemar. Ambas tiveram uma vida correta e
decente. A música “O mundo é moinho” é um conselho para alguém que vai sair de
casa, que tanto pode ser uma mulher que vai abandonar o seu homem, como uma
filha que vai abandonar o lar.
Lendo o livro “Cartola os tempos idos”, de Marília Barboza da Silva e Arthur de
Oliveira Filho, não há nenhuma referência à vida de sua filha ou de sua neta. A
música, totalmente ficcional e filosófica, é mais um conselho para uma mulher
(?) tomar cuidado, pois o moinho, que tritura tudo, pode também triturar sonhos
mal planejados.
Nilo da Silva Moraes
Observação: em algumas gravações, cantam: vai triturar teus sonhos tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó, mas na capa do disco gravado por Cartola está escrito: vai triturar teus sonhos, tão mesquinho, vai reduzir as ilusões a pó.
Numa frase, o adjetivo mesquinhos concorda com substantivo sonhos; noutra, há uma vírgula depois de sonhos, e tão mesquinho se refere a mundo, que é quem reduz as ilusões a pó.
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