segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O Trote

(Uma discussão antiga)


No dia 28 de março de 1910 não houve edição do Correio do Povo. Na época, o jornal não circulava às segundas-feiras. Era a negação absoluta do mais comezinho princípio de delicadeza; era indiscutivelmente a corporificação da brutalidade; era sem dúvida, uma prática selvagem e desumana. O estudante fazia o seu curso secundário, distinguia-se em todo ele, e não só pelo aproveitamento demonstrado perante os mestres, como pela reconhecida capacidade muitas vezes posta em evidência fora dos bancos escolares. Conquistava, desse modo, um título legítimo que lhe dava ingresso em qualquer estabelecimento de ensino superior. E resolvia entrar para a academia, acastelando na mente esperanças risonhas e sonhando com uma vida amena e doce.

Violência e decepção

Uma vez dentro da faculdade, porém, tinha a mais triste, a mais completa, a mais cruel desilusão! Nem bem penetrava nos umbrais do templo, que ingenuamente imaginara sacrossanto e augusto, e já lá via escrita a giz ou a carvão, numa parede, a sentença que o condenava a priori, sem apelação nem agravo.

“Nem tudo que luz é ouro,
Nem todo sopapo é murro:
Nem todo burro é calouro,
Mas todo o calouro é burro.”

Se fosse só isso, se se tratasse apenas de uma infração dos preceitos de urbanidade, não seria nada.

Mas não ficava nisso. O novato, ao dirigir-se para a aula, recebia logo à porta da sala uma surriada de impropérios, acompanhados de pescoções, de pontapés, de berros estridentes e de assovios ensurdecedores. E, quando se retirava, confundido ainda pelos textos complicados do Digesto, embaraçado pelo latim das Institutas ou emaranhado em problemas altamente filosóficos, como o da imoralidade da alma, era o infeliz agarrado a muque e a laço, violentamente por alguns impiedosos veteranos, que o transformavam em um verdadeiro arlequim, pintando-lhe o rosto de preto ou vermelho, virando-lhe a roupa pelo avesso, cobrindo-lhe a cabeça com uma carapuça de papel ordinário e, por cima de tudo, obrigando-o a triangular pela cidade montado numa égua magra, ou sentado no varal de uma carroça, quando, porventura, a sua força física não lhe permitia puxar o veículo pelas ruas... Foi assim... Foi assim antigamente!

1878: A resistência dos calouros

A 9 de setembro de 1878, os primeiranistas de direito, após um incidente suscitado dias antes, entre um calouro e um veterano repeliram energicamente o ataque de que eram alvo, resultado daí um conflito muito sério que teve as maiores consequências. Nessa ocasião, cinquenta praças da guarda urbana, sob o comando de um alferes energúmeno, invadiram o saguão da Faculdade, espaldeirando a torto e a direito os acadêmicos. O espírito de classe, então, ferveu em todos os cérebros, e, desde o primeiro até o quinto ano, inclusive os preparatorianos, estudantes unidos em um só bloco, congraçados pelas circunstâncias especialíssimas do momento, expulsaram os imprudentes soldados que se haviam imiscuído nos seus negócios internos. Salientou-se o bacharelando José Gomes Pinheiro Machado, que a esse tempo não era nem senador, nem pai da pátria, mas que assumiu a vanguarda do éxercito improvisado de estudantes (cerca de 400 rapazes), dirigindo o combate com a tática de um militar experimentado no ofício...

O trote é abolido

No dia seguinte ao do conflito, às 7 horas da noite, no pátio do colégio (hoje largo do Palácio), realizou-se um meeting, perante mais de 300 pessoas, discursando o quartanista de direito, José Antonio Pedreira de Magalhães Castro. No correr da eletrizante alocução, o jovem tribuno republicano concitou os estudantes de todas as categorias a reunirem-se em torno da bandeira do Hino Acadêmico, para cimentar para sempre a coesão e harmonia da classe, e acabou proclamando a abolição do trote! A multidão prorrompeu em entusiásticos aplausos. E Magalhães Castro acrescentou: - “A lei está promulgada pela soberania acadêmica e popular. Nunca mais as vaias na Academia!”.

Em 10 de setembro de 1878 a Província de São Paulo (atualmente Estado) dizia: “O que é muito para desejar agora é que morra por uma vez em nossas academias o desagradável legado das vaias de Coimbra.”

E a herança que nos veio da universidade portuguesa morreu, de fato, desde essa data. Eis como, há mais de trinta anos se baniu da Faculdade essa prática deprimente e condenável.

O ressurgimento

Em seguida, surgiu o ensino livre, consubstanciado pelo conselheiro Leôncio de Carvalho, ministro do império, no decreto de 17 de abril de 1879. Não havendo mais frequência obrigatória, o trote, que já estava extinto por iniciativa espontânea da classe, desapareceu inteiramente do nosso meio, por espaço de dezesseis anos, dos quais dez no regime decaído, de sorte que, quando se proclamou a República, já se achava a academia expurgada de tal usança, bárbara e funesta.

Mas, por decreto n 314, de 30 de outubro de 1895, o ministro Gonçalves Ferreira, no governo Prudente de Moraes, restabeleceu a obrigatoriedade da frequência às aulas, e com ela foi também restabelecendo aos poucos o trote pelo contato dos alunos que se encontravam quotidianamente por um fenômeno de reversão, que os arrastou para os domínios do passado. E renasceu o espantalho - religião canibalesca - com o seu depravado culto externo, sua pragmática e sua praxe detestáveis. Em 1909, as vaias reboavam de novo pelas arcadas do velho convento de São Francisco, e os primeiranistas eram atropelados a todo o instante, perseguidos a cada momento, maltratados de minuto a minuto.

Correio do Povo, 05/05/1910.

O retorno dos trotes

Lemos na Plateia, da capital de São Paulo:


“A imprensa da capital, na sua unanimidade, ao se reabrirem, há dias, as aulas da Faculdade, comemorou a abolição do trote em nossos estabelecimentos de ensino superior. Assim, na Academia de Direito e na Escola de Farmácia, ao em vez das costumadas vaias e surriadas, os calouros foram acolhidos festivamente por parte de uma minoria de acadêmicos, que, desde o ano passado, tinham tomado o compromisso de deixar em sossego os pobres primeiranistas.

Mas a tradição é uma coisa que se não destrói de um dia para outro. O certo é que na faculdade, o ânimo folgazão da maioria dos estudantes, manteve o precedente. As vaias, as peruadas sucedem-se diariamente, cada vez com mais furor.”

Correio do Povo, 12/5/1910.


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