(Uma discussão antiga)
No dia 28 de março de 1910 não houve
edição do Correio do Povo. Na época, o jornal não circulava às segundas-feiras.
Era a negação absoluta do mais comezinho princípio de delicadeza; era
indiscutivelmente a corporificação da brutalidade; era sem dúvida, uma prática
selvagem e desumana. O estudante fazia o seu curso secundário, distinguia-se em
todo ele, e não só pelo aproveitamento demonstrado perante os mestres, como
pela reconhecida capacidade muitas vezes posta em evidência fora dos bancos
escolares. Conquistava, desse modo, um título legítimo que lhe dava ingresso em
qualquer estabelecimento de ensino superior. E resolvia entrar para a academia,
acastelando na mente esperanças risonhas e sonhando com uma vida amena e doce.
Violência e decepção
Uma vez dentro da faculdade, porém,
tinha a mais triste, a mais completa, a mais cruel desilusão! Nem bem penetrava
nos umbrais do templo, que ingenuamente imaginara sacrossanto e augusto, e já
lá via escrita a giz ou a carvão, numa parede, a sentença que o condenava a priori,
sem apelação nem agravo.
“Nem tudo que
luz é ouro,
Nem todo sopapo é murro:
Nem todo burro é calouro,
Mas todo o calouro é burro.”
Nem todo sopapo é murro:
Nem todo burro é calouro,
Mas todo o calouro é burro.”
Se fosse só isso, se se tratasse
apenas de uma infração dos preceitos de urbanidade, não seria nada.
Mas não ficava nisso. O novato, ao
dirigir-se para a aula, recebia logo à porta da sala uma surriada de impropérios,
acompanhados de pescoções, de pontapés, de berros estridentes e de assovios
ensurdecedores. E, quando se retirava, confundido ainda pelos textos
complicados do Digesto, embaraçado pelo latim das Institutas ou emaranhado em
problemas altamente filosóficos, como o da imoralidade da alma, era o infeliz
agarrado a muque e a laço, violentamente por alguns impiedosos veteranos, que o
transformavam em um verdadeiro arlequim, pintando-lhe o rosto de preto ou
vermelho, virando-lhe a roupa pelo avesso, cobrindo-lhe a cabeça com uma
carapuça de papel ordinário e, por cima de tudo, obrigando-o a triangular pela
cidade montado numa égua magra, ou sentado no varal de uma carroça, quando,
porventura, a sua força física não lhe permitia puxar o veículo pelas ruas...
Foi assim... Foi assim antigamente!
1878: A resistência dos calouros
A 9 de setembro de 1878, os
primeiranistas de direito, após um incidente suscitado dias antes, entre um
calouro e um veterano repeliram energicamente o ataque de que eram alvo,
resultado daí um conflito muito sério que teve as maiores consequências. Nessa ocasião,
cinquenta praças da guarda urbana, sob o comando de um alferes energúmeno,
invadiram o saguão da Faculdade, espaldeirando a torto e a direito os acadêmicos.
O espírito de classe, então, ferveu em todos os cérebros, e, desde o primeiro
até o quinto ano, inclusive os preparatorianos, estudantes unidos em um só bloco,
congraçados pelas circunstâncias especialíssimas do momento, expulsaram os
imprudentes soldados que se haviam imiscuído nos seus negócios internos.
Salientou-se o bacharelando José Gomes Pinheiro Machado, que a esse tempo não
era nem senador, nem pai da pátria, mas que assumiu a vanguarda do éxercito
improvisado de estudantes (cerca de 400 rapazes), dirigindo o combate com a tática
de um militar experimentado no ofício...
O trote é abolido
No dia seguinte ao do conflito, às 7
horas da noite, no pátio do colégio (hoje largo do Palácio), realizou-se um meeting, perante mais de 300 pessoas, discursando
o quartanista de direito, José Antonio Pedreira de Magalhães Castro. No correr
da eletrizante alocução, o jovem tribuno republicano concitou os estudantes de
todas as categorias a reunirem-se em torno da bandeira do Hino Acadêmico, para
cimentar para sempre a coesão e harmonia da classe, e acabou proclamando a
abolição do trote! A multidão prorrompeu em entusiásticos aplausos. E Magalhães
Castro acrescentou: -
“A lei está promulgada pela soberania acadêmica e popular. Nunca mais as vaias
na Academia!”.
Em 10 de setembro de 1878 a Província de São
Paulo (atualmente Estado) dizia: “O que é muito para desejar agora é que morra
por uma vez em nossas academias o desagradável legado das vaias de Coimbra.”
E a herança que nos veio da
universidade portuguesa morreu, de fato, desde essa data. Eis como, há mais de
trinta anos se baniu da Faculdade essa prática deprimente e condenável.
O ressurgimento
Em seguida, surgiu o ensino livre,
consubstanciado pelo conselheiro Leôncio de Carvalho, ministro do império, no
decreto de 17 de abril de 1879. Não havendo mais frequência obrigatória, o
trote, que já estava extinto por iniciativa espontânea da classe, desapareceu
inteiramente do nosso meio, por espaço de dezesseis anos, dos quais dez no
regime decaído, de sorte que, quando se proclamou a República, já se achava a
academia expurgada de tal usança, bárbara e funesta.
Mas, por decreto n 314, de 30 de
outubro de 1895, o ministro Gonçalves Ferreira, no governo Prudente de Moraes, restabeleceu
a obrigatoriedade da frequência às aulas, e com ela foi também restabelecendo
aos poucos o trote pelo contato dos alunos que se encontravam quotidianamente
por um fenômeno de reversão, que os arrastou para os domínios do passado. E
renasceu o espantalho - religião canibalesca - com o seu depravado culto
externo, sua pragmática e sua praxe detestáveis. Em 1909, as vaias reboavam de
novo pelas arcadas do velho convento de São Francisco, e os primeiranistas eram
atropelados a todo o instante, perseguidos a cada momento, maltratados de
minuto a minuto.
Correio do Povo, 05/05/1910.
O retorno dos trotes
Lemos na Plateia, da
capital de São Paulo:
“A imprensa da capital, na sua
unanimidade, ao se reabrirem, há dias, as aulas da Faculdade, comemorou a
abolição do trote em nossos estabelecimentos de ensino superior. Assim, na
Academia de Direito e na Escola de Farmácia, ao em vez das costumadas vaias e
surriadas, os calouros foram acolhidos festivamente por parte de uma minoria de
acadêmicos, que, desde o ano passado, tinham tomado o compromisso de deixar em
sossego os pobres primeiranistas.
Mas a tradição é uma coisa que se não
destrói de um dia para outro. O certo é que na faculdade, o ânimo folgazão da
maioria dos estudantes, manteve o precedente. As vaias, as peruadas sucedem-se
diariamente, cada vez com mais furor.”
Correio do Povo,
12/5/1910.
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