Mariana Cruz
Centro do Rio em 1900
O trabalhador apressado, o estudante
descontraído e a bailarina compenetrada andam pelas ruas do Centro do Rio. Cada
um em seu itinerário: o primeiro vai atrás de cifras no Edifício Avenida
Central, situado entre o Largo da Carioca e a Avenida Rio Branco; o segundo
pensa na cerveja com os amigos na Luis de Camões após as aulas sobre Durkhein e
Rousseau que terá no IFCS – o Instituto de Filosofia e Ciência Sociais – no
Largo de São Francisco; a bailarina salta do ônibus no Passeio em direção à Rua
Visconde de Maranguape, na Lapa. Ela nem olha para os lados, em sua cabeça só
os passos da coreografia que terá de apresentar dali a poucos minutos para a
banca que a aguarda na Escola Estadual de Dança Mariana Olenewa – a primeira
escola de dança clássica fundada no Brasil.
Assim como esses três personagens,
muitas pessoas que perambulam diariamente por aquelas ruas não param para
pensar nas pegadas de outra época marcadas em seu chão. Uma simples visita a
alguns clássicos da nossa literatura dos séculos XIX e XX ressalta referência
constante ao Centro da cidade do Rio de Janeiro e nos traz de volta, pela
descrição de sua arquitetura e personagens, a cidade de tempos atrás. A escolha
do cenário carioca deve-se provavelmente ao progresso ocorrido nessa região com
a inauguração da primeira linha de bondes (na segunda parte do século XIX) e da
reforma de Pereira Passos (em inícios do século XX). Tais fatores, somados ao
fato de o Rio ser a capital federal, fizeram do Centro o grande polo cultural,
social e econômico – ou, como se diz hoje em dia, o verdadeiro point da época.
O caçador de escravos de Machado de
Assis, personagem do tristíssimo e belo conto “Pai contra mãe” (1906), que vai
atrás da escrava grávida e fujona, visando à gorda recompensa oferecida pela
captura, passa pelas Ruas dos Barbonos, da Guarda Velha e da Ajuda. Para os
recentes frequentadores do Centro, tais nomes pouco dizem. Mas eles nem
imaginam quão próximos são esses locais:
assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu da Rua dos
Barbonos (...) ao entrar na Rua da Guarda Velha (...) foi então que lhe ocorreu
entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda (...) chegou ao fim
do beco e, indo dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda (...) foi
arrastando a escrava pela Rua dos Ouvires, em direção à da Alfândega...
O perdido leitor há de se encontrar
quando souber que a Rua dos Barbonos é a atual Evaristo da Veiga, onde fica o
Quartel General da Polícia Militar. Barbono é uma das denominações dadas aos
capuchinhos franciscanos, que tinham ali seu convento. A Rua da Guarda Velha é
agora a conhecida Rua 13 de Maio. O nome antigo devia-se à avançada idade da
equipe de guarda designada para tomar conta de uma enorme caixa d’água erguida
no local, em uma das primeiras tentativas de canalizar a água até a cidade
ainda no século XVII. Já a Rua da Ajuda – a única que existe até hoje – foi
quase toda absorvida pela abertura da Avenida Central – hoje chamada Rio
Branco; entretanto, o trecho entre esta avenida e a Rua da Assembleia ainda
guarda esse nome, apesar de já ter sido chamada de Chile e Melvin Jones.
Em “Pilades e Orestes” (1903),
Machado faz lembrar o nome completo da Praça Quinze:
um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a Praça
Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) o que o matou quase
instantaneamente. Está enterrado no cemitério São João Batista.
Entre tantas referências machadianas a
lugares do Rio de Janeiro, não há como deixar de citar Dom Casmurro. Logo na
frase de abertura, o personagem do título, ao explicar sua alcunha, cita o
bairro onde foi morar na velhice: “Uma noite destas, vindo da cidade para o
Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro”. Mas, sem
conseguir se desligar do lugar onde passou sua infância e adolescência,
constrói em seu bairro atual uma réplica da casa dos seus primeiros anos: “Um
dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me
criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia
daquela outra”.
Os que conhecem bem o Rio e a obra de
Machado de Assis sabem que a Rua de Mata-Cavalos é a Rua do Riachuelo, umas das
ruas preferidas pelos ricos daquela época. A narrativa de Bentinho prossegue
nas andanças pelas ruas do centro: “Tinha o escritório na antiga Rua das
Violas, perto do júri, que era no extinto Aljube. Trabalhava no crime. José
Dias não perdia as defesas orais de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a
toga, com muitos cumprimentos no fim”.
A Rua das Violas chama-se agora Rua
Teófilo Otoni. A despeito disso, a narrativa do marido de Capitu mostra que
muitas das antigas ruas do Centro mantêm seus nomes:
“Com pouco, senti-me me cansado; os braços caíam-me, felizmente a casa
era perto, na Rua do Senado”.
“Este gosto de imitar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia-me José
Dias andando e comentando a queda, é evidentemente um erro”.
“A casa não era logo
ali, mas muito além da dos Inválidos, perto da do Senado”.
“Quis saber a minha idade, os meus estudos, a minha fé e dava-me
conselhos para o caso de vir a ser padre; disse me o número do armazém, Rua da
Quitanda”.
“Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa,
mas voltei para trás, e subi outra vez a Rua do Catete”.
Nas redondezas do Centro, eis que
Bentinho nos leva ao Catete: “Enfim,
passei, acendi um charuto, e dei por mim no Catete, tinha subido pela Rua da
Princesa, uma rua antiga... ó ruas antigas! ó casas antigas! ó pernas
antigas!”.
Se o próprio Machado considerava tal
rua antiga, para nós deve ser antiquíssima. A princesa a que se refere é a
Isabel, que descia a rua para ir à foz do Rio Carioca. Hoje a Rua da Princesa é
a famosa Rua Paissandu, situada em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo
estadual, e conhecida por suas palmeiras imperiais.
Mas nem só de Machado de Assis vive o
Rio Antigo. Em muitos outros autores encontramos curiosas passagens sobre a
cidade de outrora.
No conto “O
bebê de tartalana rosa” (1910), de João do Rio, encontra-se:
“atravessamos a Rua Luís de Camões, ficamos bem embaixo das sombras
espessas do Conservatório de Música.”
Apesar de a referida rua ainda se
chamar assim – e não mais Rua da Lampadosa –, o prédio a que o autor se refere
não abriga mais o Conservatório de Música e sim o Centro Cultural Hélio
Oiticica.
O romance “Lucíola”
(1862), de José de Alencar, se passa no centro e arredores:
“levou-me à festa da Glória; uma das poucas festas populares da corte.
Conforme o costume, a grande romaria desfilando pela Rua da Lapa e ao longo do
cais, serpejava nas faldas do outeiro e apinhava-se em torno da poética ermida,
cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo”.
A festa da Glória acontecia no bairro
de mesmo nome desde 1671, na ermida de Nossa Senhora da Glória, substituída em
1714 pela igreja que está até hoje no Outeiro. A festa era um acontecimento que
juntava povo e elite – que lotavam a ladeira e se espalhavam pelas redondezas
do outeiro.
Por falar nas redondezas do outeiro, o
livro de José de Alencar traz também os nomes originais das ruas daquela
região.
“Ela mostrou não me reconhecer imediatamente; mas apenas falei-lhe do
nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e fez-me o mais amável
acolhimento.”
A antiga Rua das Mangueiras, situada
perto dos Arcos da Lapa, chama-se agora Visconde de Maranguape.
Em “O Ateneu” (1888), de Raul Pompeia,
Sérgio evoca suas lembranças do tempo de estudante de uma escola fictícia
situada no centro do Rio:
“Para a prova oral fui mais animado. A nota da escrita era tranquilizadora.
Os exames orais eram todos nas salas de cima. Entrava-se pela Rua dos Ourives.”
Atualmente, a Rua dos Ourives foi
dividida em duas: a Rua Miguel Couto, do Largo de Santa Rita até a Avenida Rio
Branco, passando pela Avenida Presidente Vargas; e a Rua Rodrigo Silva, que vai
da Rua Sete de Setembro até a Rua São José.
Arthur
Azevedo também fala sobre as ruas do Centro no conto Questão de honra.
“Alguns minutos depois, o coupé deixava-a no Largo de S. Francisco. Ela
tomou a pé a Rua do Rosário, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfândega e,
sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou
precipitadamente num casarão de dois andares.”
“A gentil pecadora
sentou radiante na Rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal.”
Todas as ruas citadas preservaram o
nome; apenas a elegante loja de roupas Palais-Royal pertence ao passado.
Em seu conto
“Black”, Azevedo distancia-se um pouco do Centro:
“Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do Bairro de São
Cristóvão, frequentava a casa do Senhor Martins, que era casado com a moça mais
bonita da rua do Pau-Ferro.”
A Rua Conde de Leopoldina foi chamada
de Pau-Ferro por duas vezes, quando da sua abertura e logo após a República.
Em outro conto, Paulino e Roberto, Azevedo
cita um trecho do caminho feito pelo bondinho. Ambos – caminho e bondinho – não
existem mais.
“achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo,
viu entrar no carro o Vespasiano, acompanhado por uma senhora que era Adelaide
sem tirar nem pôr.”
Tais livros, apesar de ficções, são
verdadeiros documentos sobre a vida do antigo centro da cidade do Rio, trazem
as ruas com seus nomes de origem, com estabelecimentos, moradias, hábitos e
transportes pertencentes a um tempo passado. Elementos cada vez mais distantes,
lembrados por um ou outro ancião.
Enquanto isso, o trabalhador, o
estudante e a bailarina seguem seus trajetos e continuam a história do que está
por vir.
Para adoçar a memória dos saudosistas
e aguçar o interesse dos curiosos sobre a história do Rio de antigamente e de
hoje, aí está uma lista de ruas e lugares do centro da cidade e adjacências que
mudaram de nome.
Arcos da Carioca – Arcos da Lapa
Aterrado – Cidade Nova
Rua dos Barbonos – Rua Evaristo da Veiga
Beco do Telles – Travessa do Comércio
Rua das Belas Noites – Rua das Marrecas
Praias do Boqueirão e da Lapa – Avenida Beira-Mar
Rua da Cadeia – Rua da Assembleia
Rua do Cano – Rua Sete de Setembro
Convento do Carmo – tornou-se anexo da Universidade Cândido
Mendes
Rua Direita – Rua Primeiro de Março
Rua Estreita de São Joaquim – Rua Visconde de Inhaúma
Rua do Fogo – Rua dos Andradas
Rua do Hospício – Rua Buenos Aires
Lagoa do Freitas – Lagoa Rodrigo de Freitas
Rua da Lampadosa – Rua Luís de Camões
Largo da Prainha – Praça Mauá
Largo do Paço – Praça XV de Novembro
Rua dos Latoeiros – Rua Gonçalves Dias
Rua das Mangueiras – Rua Visconde de Maranguape
Rua de Mata-cavalos – Rua do Riachuelo
Rua de Mata-porcos – Rua Estácio de Sá
Morro do Desterro – Santa Teresa
Rua dos Ourives – Ruas Miguel Couto e Rodrigo Silva
Palácio da Quinta da Boa Vista – Museu Nacional
Rua do Piolho – Rua da Carioca
Praia do Peixe – Rua do Mercado
Saco do Alferes – Santo Cristo
Rua da Vala – Rua Uruguaiana
Rua das Violas – Rua Teófilo Otoni
Ilha de Villegaignon – Escola Naval
Ponta do Calabouço – final do Aeroporto Santos Dumont
(Do Blog Educação
Pública)
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