terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Um linda crônica de verão

Qual é a sua praia?

Martha Medeiros

Ilustração de Fraga

Quando penso nos melhores momentos da minha infância, a memória me transporta para Torres. Foi lá que, menina, peguei muito jacaré com uma planonda de isopor, fiz castelos de areia, pesquei peixinhos que eram colocados em baldes, participei de piqueniques, deslizei pelas dunas, joguei frescobol. Dia de chuva era um desassossego, não havia gibi que fizesse o tempo passar, mas não chovia tanto naquela época: quase sempre o sol dava as caras desde o início de dezembro até o final de fevereiro, um esbanjamento de dias bons. Eu voltava das férias parecendo um pedaço de carvão, só apareciam o branco do olho e os dentes.

Hoje não pesco peixinhos nem deixo a pele desprotegida, mas é ainda na praia que sou mais eu. A proximidade com o mar me põe no meu devido lugar: não importa o que eu diga, faça, escreva – sou um grão de areia. É o que somos todos, o tempo inteiro, onde quer que estejamos: grãos de areia. Meu ego não se abala, inclusive concorda.

Falando em areia: há quem acredite que a praia ficaria mais perfeita sem ela. Misericórdia àqueles que não lembram como é relaxante sentar numa cadeirinha embaixo do guarda-sol e fazer curtos caminhos com o calcanhar, para frente e para trás, tendo uma caipirinha gelada em mãos.

Pode-se ter em mãos um livro também. Pois é, me sinto obrigada a incentivar a leitura, mas sendo perigosamente sincera: praia não é lugar para ler, a não ser que você esteja sozinha numa enseada esquecida por Deus. Aí, até recomenda-se, para dispersar os maus pensamentos. Mas em dia ensolarado e com gente em volta, não consigo prestar atenção numa única linha. Leio, leio, leio à beira-mar, e quando volto para casa releio, releio e releio as mesmas páginas.

Praia é ponto de encontro sem hora fixa pra chegar, sem convite impresso, sem répondez s’il-vou-plait. Balada aberta ao público, sem paredes, sem holofotes, o sorriso valendo como ingresso. Boca livre.

Praia é pra quem está de bem com a vida, embaixada internacional da liberdade, pátria do chinelo de dedo, passarela do biquíni, congresso mundial da tatuagem. O Brasil tem 8.000km de orla pra ninguém morrer de tédio e muito menos de rabugice.

Inferno emocional? Até isso praia minimiza. Quem já não deu uma choradinha em frente ao mar, num final de tarde, processando uma ardente dor-de-cotovelo? Você, eu, todo mundo, diante de ondas que avisavam: nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Para o bem e para o mal, um mantra.

As minhas, além de Torres: Bombinhas, Quatro Ilhas, Praia do Rosa e Ipanema. Me viram crescer, por dentro e por fora. Não há quem não tenha ao menos uma como cenário da própria história.

(Da Revista Donna de Zero Hora, janeiro de 2017)

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Torres, praia do Rio Grande do Sul;
Bombinhas, Quatro Ilhas, Praia do Rosa, praias de Santa Catarina;
Ipanema, praia do Rio de Janeiro.


Martha Medeiros é uma jornalista, escritora, aforista e poetisa brasileira.
Nascimento: 20 de agosto de 1961, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

A escritora gaúcha despontou como cronista, com um olhar atento sobre temas como cultura e comportamento. Com 23 livros publicados, entre ficção, poesia e coletâneas de crônicas, já soma mais de 1 milhão de exemplares vendidos e tem obras adaptadas para cinema e teatro. Entre seus títulos, estão: Divã, Doidas e Santas, Feliz por Nada, Liberdade Crônica e Simples Assim. Além das colunas no Donna e no primeiro caderno de Zero Hora, Martha escreve para o jornal O Globo.


Um comentário:

  1. Muito boa crônica, quando menino, não frequentei a praia, talvez por isso, não morro de amores, mas um frescobol, um banho de mar, sol, bate papo, não deixa se ser bom.

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