Luís Fernando Veríssimo
Eles são difíceis e sombrios, os
centroavantes. Reúnem-se em lugares certos, em várias partes do mundo, mas não
se olham nos olhos. Trocam lamúrias e reminiscências, como em qualquer
confraria de especialistas, mas é como se estivessem sozinhos. De vez em quando
levantam a cabeça e olham em volta, à procura de um possível empresário ou de um
fã antigo. Mas não se encaram. Eles sabem que a qualquer momento terão que
trair o companheiro ao lado. Se lhes perguntarem: “Conhece um bom
centroavante?” – terão que responder:
– Só conheço
eu mesmo.
E se
insistirem: “Me disseram que o Fulano ainda joga…” responderão:
– Não joga,
bebe muito e arrasta uma perna, de centroavante só conheço eu mesmo...
Eles são
duros e tristes, os centroavantes.
Você os encontrará em velhas tascas
do Bairro Gótico em Barcelona, depois de se acostumar com a escuridão. Em
algumas esquinas de Milão, encolhidos do frio dentro das suas japonas. Em Chacarita. No Meier.
Em Marselha, no restaurante de peixe do velho Renard, um centroavante que
desistiu antes dos 36 porque perdeu um joelho.
Você os conhece de longe. Centroavantes,
toureadores envelhecidos e mercenários, você os conhece só de ver. São
sobreviventes da profissão. Estiveram com a morte e voltaram, e têm as
cicatrizes para provar. Restam poucos centroavantes no mundo. O jeito
desconfiado, os gestos tensos, o cigarro nos dedos nervosos, os olhos cansados,
você os conhece.
Os centroavantes só falam nos
companheiros mortos ou nos que pararam, os outros são concorrentes.
Centroavante bom e vivo só conheço eu mesmo. Eles fumam muito, os
centroavantes. Mas cuidam para não tossir na frente do empresário. Nos treinos,
tratam de brigar logo com o treinador, chutar a bola longe e sair de campo,
senão não aguentariam os exercícios. Eles sabem que o treinador os irá procurar
depois no quarto do hotel e pedir perdão. São raros, os centroavantes. Quando
se reúnem, falam dos que morreram ou dos que pararam. Sem se olharem nos olhos.
Falam de Carrara, o Italiano Louco,
que uma vez comeu um bandeirinha vivo e foi retirado de campo por um batalhão
de carabinieri, ainda mastigando o pano da bandeira e ofendendo a arquibancada.
Nenhum bandeirinha jamais viu Carrara em impedimento, depois disso.
Falam de Bahal, o Turco de olhos
vermelhos, o peito de um touro e um dedão de dez centímetros em cada pé. Bahal,
morto com uma adaga na nuca dentro da pequena área, na cobrança de um córner.
Antes de morrer – mas isto já é lenda – teria feito o gol com uma lufada de
sangue.
Falam de Lúcio, o Poeta, um
brasileiro esguio com pomada no cabelo, outra história trágica. Lúcio tinha um
chute mortal. Um dia errou a goleira, a bola subiu, venceu a cerca, venceu a
arquibancada de São Januário, caiu na rua, acertou a cabeça de uma moça dentro
de um Lincoln conversível – a cantora Rosa de Rose, o Rouxinol Louro – e a
matou. Rosa era noiva de Lúcio, o caso emocionou o Brasil. Esperava o fim da
partida para levá-lo ao Cassino da Urca. Lúcio enlouqueceu. Nunca mais jogou
futebol. Hoje é funcionário da ADEG e de vez em quando se distrai. Em vez do
grande círculo, desenha o nome de Rosa com cal na grama do Maracanã.
Falam
de Tamul, a Gazela Africana, rápido como o raio, que jogava descalço e mordia a
trave sempre que perdia um gol. Tamul tinha os dentes esculpidos. Um era o Taj
Mahal. O outro, a Torre Eiffel. Um torto, bem na frente, era a Torre de Pisa.
Outro, o Obelisco da Place Vendôme. O Arco de Constantino. Falam de McMoody, o
anão escocês, que batia pênalti de cabeça e tinha placas de aço em vez de
canelas. Falam do argentino Lombroso, que chutou a cabeça do goleiro para
dentro do gol e saiu comemorando. Falam de goleiros com desdém e de beques
centrais só antes de cuspir.
Os centroavantes tendem a engordar e a
emagrecer como os outros respiram, e têm pesadelos. Sonham que a grande área é
um pântano, que não conseguem pular, que a bola é de ferro e que o tempo passa.
São raros, os centroavantes.
São raros, os centroavantes.
(Do livro QI 14,
Editora garatuja – 1975)
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