quinta-feira, 23 de março de 2017

Como viveu Maria

João Lóes


Pesquisas históricas e teológicas tentam reconstruir o dia-a-dia da mãe de Jesus. Mas muitos fatos continuam envoltos em mistério,

Maria* é a figura feminina mais reverenciada da história da humanidade. Mas muito pouco se sabe sobre ela. Dois mil anos depois, sua existência continua envolta em mistério. Sabe-se que ela era uma dona-de-casa judia que morava na vila de Nazaré, na Galileia, povoado colonizado pelos romanos. Criava galinhas no fundo do quintal e acordava com o barulho delas, ainda de madrugada, para iniciar suas atividades domésticas. Vivia em condições muito simples. Dormia em uma esteira, num chão de terra batida sobre a palha, numa casa que cheirava a óleo queimado, proveniente de uma lamparina que ela mantinha acesa, acomodada em uma cavidade na parede. Vestia o mesmo traje, independentemente da ocasião: uma túnica de linho, com a qual realizava seus afazeres ou saía para alguma atividade, sem esquecer de colocar o véu, em respeito ao marido. Era uma mãe zelosa e dedicada, que sempre tentou manter o filho próximo de si. Durante a infância de Jesus, gostava que o garoto ajudasse o pai, José, na oficina. Caso não houvesse trabalho, ela recrutava a criança para ajudar nas tarefas domésticas, como fazer farinha de cevada, buscar água na fonte e limpar a casa, que só tinha um cômodo.

Apesar de nunca esquecer que estava criando o filho de Deus, o Messias, nascido para salvar os homens, ela não se intimidava em recriminá-lo. E o fez diversas vezes durante toda a sua vida. Ralhava em público com o menino, principalmente depois que ele desenvolveu o hábito de dar umas escapadas para o templo, a partir dos 12 anos. Mais tarde, quando o rebento já tinha 30 anos, o intimou a providenciar alimento e bebida que haviam acabado durante um casamento, num dos episódios mais conhecidos do cristianismo, o primeiro milagre, das bodas de Caná da Galileia. Também há relatos de discussões entre mãe e filho, quando Jesus era jovem e ainda não havia saído em pregação. Num primeiro momento, ele se levantava e saía, deixando a mãe falando sozinha, mas Maria o chamava aos gritos e ele voltava atrás.

Como esposa, era uma mulher submissa, como todas de sua época. Casou-se aos 12 anos com José, um carpinteiro muito mais velho do que ela. Acordava mais cedo do que ele para fazer seu ritual diário de higiene esfregar rosto e cabelos com óleo e fazer tranças no cabelo ‒, mas fazia de tudo para não incomodá-lo com seu barulho. Quando, finalmente, ele despertava, dobrava a esteira onde ele havia dormido e aguardava, silenciosa, o marido fazer as orações com Jesus, ritual que costumava demorar cerca de 20 minutos. Depois que ele seguia para o trabalho, iniciava uma pesada rotina doméstica – varrer, limpar, cozinhar. Era tudo calculado, para não atrasar a primeira refeição do dia, um pão com legume ou peixe. No almoço, estendia a esteira para que marido e filho se sentassem, mas não se alimentava com eles. Ficava em pé, esperando. Esteve ao lado de José durante toda a vida dele, mas estudiosos presumem que ele tenha morrido bem antes dela e nem tenha presenciado as pregações do filho.

Para tentar reconstruir os passos de Nossa Senhora, pesquisadores buscam informações na Bíblia, em estudos históricos da política, dos costumes regionais, da religiosidade e da vida privada dos judeus, e nos evangelhos apócrifos, que nada mais são do que relatos extra-oficiais da vida dos primeiros cristãos.

Nenhum apócrifo foi dedicado exclusivamente a Maria, mas o de Thiago dá detalhes de sua vida que não constam em nenhum dos textos aceitos pela Igreja Católica como oficiais. Nele, a história da mãe de Jesus é contada desde sua concepção até o parto do futuro Messias, em Belém. Lá também estão os nomes dos pais de Maria, Ana e Joaquim, reconhecidos pela Igreja como informação verídica (tanto que os dois viraram santos). Ficção para uns, realidade para outros, eles pouco ajudam na hora de tentar elucidar algumas fases da vida de Maria. Praticamente nada se sabe sobre a infância dela, por exemplo. Apenas indicações de que pertencia a uma família de classe média, filha única de um casal que já havia perdido as esperanças de ter filhos. Também há indicações de que ela tenha passado grande parte da infância em templos. Era uma menina religiosa e devotada, muito ligada à família.

Apesar do comportamento doce e generoso que ela demonstrou ter desde a infância e que a acompanhou durante toda sua vida, Maria também foi uma mulher atuante e participativa. Quando Jesus, aos 30 anos, decidiu sair em pregação e revelar ao povo que era o filho de Deus, ela continuou muito próxima dele. Costumava dar conselhos e broncas, mas também tratava de estimulá-lo nos momentos mais difíceis, quando ele desanimava, sentia medo ou dor. “Ela acreditava piamente em tudo o que ele falava e queria ajudá-lo em sua missão”, virgem durante toda sua vida. Para isso, apontam trechos nos evangelhos de Lucas e Marcos que falam sobre os irmãos de Jesus, entre outras evidências.

Muitos especialistas também se recusam a acreditar no dogma da concepção imaculada, estabelecido pelo papa Pio IX, em 1854, segundo o qual Nossa Senhora não só se manteve pura como foi concebida assim, tendo ficado livre do pecado original. Terreno pantanoso, onde, de um lado, há os que analisam os fatos a partir da fé, e de outro, os que usam apenas a razão para entender a história.

Unanimidade entre os estudos dos evangelhos canônicos e apócrifos, dos levantamentos históricos e das pesquisas acadêmicas é a percepção simultânea de grandeza e humildade na personalidade de Maria. E é na descrição de seu cotidiano prosaico que reside toda a riqueza dessa figura religiosa e histórica, pois isso rediz a teóloga Lina Boff, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Era uma mãe na sua plenitude, como todas as outras mulheres do povo. Permaneceu ao lado do filho quando ele agonizou na cruz. E continuou fiel às suas palavras, sem temer as perseguições. Era tão importante e respeitada entre os primeiros cristãos que estavam presentes no dia de Pentecostes, ao lado dos apóstolos, nesta que é considerada oficialmente como a data de início do cristianismo. Não se sabe por quanto tempo Maria viveu, mas há outro dogma estabelecido pela Igreja Católica (papa Pio XII, em 1950), que afirma que seu corpo ascendeu aos céus.

Assim como há mistérios que envolvem a vida de Nossa Senhora, há também muita polêmica. Contrariando o discurso oficial católico, muitos estudiosos garantem que ela teve outros filhos com José e, portanto, não permaneceu força seu vínculo com a cansativa realidade vivida pela maioria de seus devotos. “Maria é uma pessoa que, como nós, não nasceu pronta. Ela aprende e amadurece. E é na humanidade dela que a gente descobre todas as suas qualidades”, resume Afonso Murad, professor de teologia no Instituto Teológico do Estado de São Paulo. Assim, tornou-se um modelo atemporal de qualidades ao alcance dos homens. Independentemente de suas crenças.

* Maria: 15 a.C. ‒ 57 d.C. – segundo pesquisa de alguns historiadores.

(IstoÉ Independente)



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