sexta-feira, 10 de março de 2017

Diálogo difícil


Ivan Ângelo



Imagem publicada originalmente com o artigo "Diálogo Difícil"


Um homem do interior esbarra no jargão de uma secretária

Se ultrapassar a barreira representada por uma secretária, quando se quer falar com um executivo ao telefone, já é um pouco complicado para urbanos acostumados, que dirá quando vem alguém de longe, aonde não chegaram ainda certos truques do linguajar sempre polido daquelas que recebem dos patrões a ingrata missão de afastar em vez de aproximar.

‒ Financeira Saraiva, boa-tarde ‒ diz a secretária.

‒ Boa-tarde, moça. O doutor Saraiva está?

‒ Quem gostaria?

Para ouvidos traquejados isso significa: pode estar ou pode não estar, depende de quem está falando. O verbo gostar no condicional joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades. Mas as palavras têm um sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no sentido particular.

‒ Gostaria não é bem o causo. Eu vim mais por precisão do que por gosto.

A resposta não servia a ela, que estava interessada no “quem” da pergunta. Já o interlocutor prestara maior atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais sentido na circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca da informação que desejava:

‒ Mas quem gostaria?

‒ Gostaria de quê?

Para fugir do impasse, a secretária resolveu usar a língua geral:

‒ O que estou perguntando é qual o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com ele.

Aí, para o homem do interior, já era quase uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião:

‒ Uai, mas, se eu perguntei primeiro se o doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de rebater com outra pergunta, não é não? Eu penso assim.

‒ Como é que vou encaminhar o senhor sem saber o seu nome?

‒ Posso até dar o nome, mas eu não disse que queria falar com ele. Só perguntei se ele estava...

A secretária, com a objetividade da profissão, tentou contornar:

‒ O senhor quer falar com ele?

‒ Gostaria ‒ ironizou o homem.

‒ Bom, então, por favor, o senhor pode me dizer o seu nome?

‒ Posso. É João Honorato.

Aí veio outra pergunta fatal das secretárias:

‒ De onde?

Para quem conhece os códigos, a pergunta significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem não conhece:

‒ De onde? Ah, sou de um lugar muito pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar: Desterro do Melo. Ouviu falar?

‒ Não, não ouvi ‒ e lá veio outra pergunta do repertório: ‒ É particular, senhor?

‒ Aí a senhora me pegou. O Desterro? Particular?

‒ O assunto, senhor, é particular?

‒ Ah, bom. Por enquanto, é. Daqui a pouco tá na boca do povo.

‒ Pode adiantá-lo, senhor, para eu estar passando para o doutor Saraiva?

‒ Não, eu mesmo passo.

A secretária vencida e grilada contatou o patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João Honorato. Foi uma conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas risadas, apelos, promessas, regateios, garantias, agradecimentos. Depois o doutor Saraiva veio até ela:

‒ Dona Regina, o senhor João Honorato está vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de Deus, fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho. De hoje em diante, por favor, não mais “quem gostaria?”, “de onde?”, “estar passando”, “qual é o assunto”. Ele acha que quem telefona sabe o que quer e com quem quer.

‒ Mas quem é esse João Honorato?

‒ O rei da soja. Agora é nosso patrão: vendi minha parte para ele nesse fim de semana.



Publicado originalmente em 16 maio 2001. Revista Veja.



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