Ivan Ângelo
Imagem publicada
originalmente com o artigo "Diálogo Difícil"
Um homem do
interior esbarra no jargão de uma secretária
Se ultrapassar a barreira representada
por uma secretária, quando se quer falar com um executivo ao telefone, já é um
pouco complicado para urbanos acostumados, que dirá quando vem alguém de longe,
aonde não chegaram ainda certos truques do linguajar sempre polido daquelas que
recebem dos patrões a ingrata missão de afastar em vez de aproximar.
‒ Financeira
Saraiva, boa-tarde ‒ diz a secretária.
‒ Boa-tarde,
moça. O doutor Saraiva está?
‒ Quem
gostaria?
Para ouvidos traquejados isso
significa: pode estar ou pode não estar, depende de quem está falando. O verbo
gostar no condicional joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades.
Mas as palavras têm um sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no
sentido particular.
‒ Gostaria
não é bem o causo. Eu vim mais por precisão do que por gosto.
A resposta não servia a ela, que
estava interessada no “quem” da pergunta. Já o interlocutor prestara maior
atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais sentido na
circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca da
informação que desejava:
‒ Mas quem
gostaria?
‒ Gostaria
de quê?
Para fugir
do impasse, a secretária resolveu usar a língua geral:
‒ O que
estou perguntando é qual o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com
ele.
Aí, para o homem do interior, já era
quase uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião:
‒ Uai, mas, se eu perguntei primeiro
se o doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de
rebater com outra pergunta, não é não? Eu penso assim.
‒ Como é que
vou encaminhar o senhor sem saber o seu nome?
‒ Posso até dar o nome, mas eu não
disse que queria falar com ele. Só perguntei se ele estava...
A
secretária, com a objetividade da profissão, tentou contornar:
‒ O senhor
quer falar com ele?
‒ Gostaria ‒
ironizou o homem.
‒ Bom,
então, por favor, o senhor pode me dizer o seu nome?
‒ Posso. É
João Honorato.
Aí veio
outra pergunta fatal das secretárias:
‒ De onde?
Para quem conhece os códigos, a
pergunta significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem
não conhece:
‒ De onde? Ah, sou de um lugar muito
pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar:
Desterro do Melo. Ouviu falar?
‒ Não, não
ouvi ‒ e lá veio outra pergunta do repertório: ‒ É particular, senhor?
‒ Aí a
senhora me pegou. O Desterro? Particular?
‒ O assunto,
senhor, é particular?
‒ Ah, bom.
Por enquanto, é. Daqui a pouco tá na boca do povo.
‒ Pode
adiantá-lo, senhor, para eu estar passando para o doutor Saraiva?
‒ Não, eu
mesmo passo.
A secretária vencida e grilada
contatou o patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João
Honorato. Foi uma conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas
risadas, apelos, promessas, regateios, garantias, agradecimentos. Depois o
doutor Saraiva veio até ela:
‒ Dona Regina, o senhor João Honorato
está vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de
Deus, fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho.
De hoje em diante, por favor, não mais “quem gostaria?”, “de onde?”, “estar
passando”, “qual é o assunto”. Ele acha que quem telefona sabe o que quer e com
quem quer.
‒ Mas quem é
esse João Honorato?
‒ O rei da
soja. Agora é nosso patrão: vendi minha parte para ele nesse fim de semana.
Publicado
originalmente em 16 maio 2001. Revista Veja.
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