Quem trouxe João Gilberto para Porto
Alegre, foi o Luis Telles, um dos componentes do conjunto que estourou nas
paradas de sucesso em todo
Brasil , na década de 1950. O conjunto era Os Quitandinhas Serenades, tendo como
companheiros o Luís Bonfá, Francisco Pacheco e o Alberto Ruschel.
(...)
Quando Luis Telles saía com João
Gilberto para darem uma caminhada, à tarde, pela Rua da Praia. Levavam o
Norton* a tiracolo. Luis era muito popular e tinha um grande número de amigos.
Toda vez que se encontrava com um amigo e parava para conversar, João saía de
perto e se sentava no meio fio e ficava cantando baixinho, só para ele mesmo.
Caso Luis parasse cinco vezes para atender amigos, cinco vezes João se sentava
no meio fio. Luis ficava embaraçado com o comportamento particular de seu amigo
e despachava seus outros amigos o mais rápido que pudesse para não passar mais
vergonha com João.
Quem ainda pensa que João Gilberto
faz um tipo, que ficou excêntrico depois que alcançou notoriedade nacional e
internacional, está completamente enganado. Quando apareceu por aqui, já era o
que hoje ainda é: uma pessoa de comportamento ímpar, diferente mesmo. Aliás,
segundo Norton, ele até está mais calmo. João Gilberto apareceu aqui em Porto Alegre quando recém
estava se formando o movimento da Bossa Nova. Os gaúchos, muito conservadores
na década de 1950, não conseguiram entender a arte desse desconhecido que
cantava baixinho e com uma divisão completamente diferente do estavam,
acostumados. Eles entendiam Lupicínio, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves e outros
do mesmo estilo. Isso gerou alguma resposta atrevidas de João Gilberto aos
menos sensíveis ao seu tipo de música.
Certa ocasião, iniciou um de seus
sambas, quando ainda se apresentava no Radim Clube. Ary Selhane resolveu
acompanhá-lo com uma caixinha de fósforos. Num repente, João parou a música e
falou:
‒ Minha música não precisa de
acompanhamento, principalmente de uma caixinha de fósforo de um merda que nem
isso sabe fazer! Colocou o violão embaixo do braço e ficou desempregado.
Ary era o dono do Radim Clube.
Noutra ocasião, no Clube da Chave, um
clube privê, onde só entrava quem tivesse a chave da porta oferecida pelo
proprietário Ovídio Chaves, João teve um sério incidente. A propósito, a
grã-finagem achava o máximo dizer que tinha a chave da porta. Pois João
Gilberto foi se apresentar para a seleta plateia. Assim que se ajeitou no
banquinho e arrumou o microfone, foi apresentado por Ovídio.
‒ Senhoras e
senhores, tenho o prazer de apresentar o cantor carioca Gilberto.
‒ Meu
senhor. Primeiro eu não sou carioca. Sou baiano e meu nome é João Gilberto.
Na metade da música, uma grã-fina
começou a rir muito alto, de frescuras com seu acompanhante. João parou, olhou
para a grã-fina e, sem papas na língua, disse para quem quisesse ouvir:
‒ Fazemos uma troca, garota. Eu paro
a música e você dá logo para ele pra nós vermos! Levantou-se irado e chegou bem
mais cedo no Majestic. Com isso, perdera mais um emprego.
Foi a partir desses insólitos acontecimentos
que aprenderam que João Gilberto só se apresentava para plateias educadas e que
quisessem ouvir boa música.
Não tenho certeza, mas parece que
ainda houve incidente semelhante no Clube do Comércio. Ele parou sua música
devido a movimentação exagerada dos garçons e das batidas de talheres nos
pratos, até que todos silenciassem.
Dos atos cometidos por João Gilberto,
tem um que acho antológico. João gostava de ouvir música clássica. Como não
tinha eletrola, peruava a da Casa Coates, na Sete de Setembro, embaixo do
antigo prédio da Rádio Farroupilha. Quem atendia João era o Carlos Jacoboni**,
um dos balconistas. João pediu algumas sinfonias de Beethoven e foi direto lá
para o fundo colocar o disco numa enorme eletrola que ficava alta do chão, uns cinquenta
centímetros. Ela era sustentada por quatro longos pés roliços. Quase uma hora
depois, Jacoboni notou que a música continuava, mas João Gilberto havia
desaparecido. Dirigiu-se até ao local e, quando chegou perto, viu uns pés
debaixo da eletrola. Era o João, deitado de todo o comprimento, embaixo do
equipamento de som.
‒ João, o que é que estás fazendo aí
embaixo?
‒ Jacoboni, descobri! Aqui debaixo o
som é muito melhor...
E eu, uma besta, lá no banco da
praça, assistia ao Norton tomando vitamina com aquele cara, e não sabia que ele
seria, pouco mais tarde, o grande João Gilberto.
Paciência...
(Do livro “Os Anos
Dourados na Praça da Alfândega 2,
de José Rafael Rosito
Coiro*** – 1995)
* Norton Lourenço Mello Fernandes.
Apelido Sarará. Empresário. Leiloeiro oficial. Residia em Porto Alegre.
** Carlos Jacoboni: Juiz classista. Residia em Porto Alegre.
*** José Rafael Rosito Coiro
faleceu em 22 de agosto de 2007. Foi professor e, ainda, foi conselheiro do Grêmio Foot-Ball Porto
Alegrense.
P.S. João Gilberto Pereira de Oliveira, nascido em Juazeiro, Bahia, em 10 de junho de 1931 - falecido em 6 de julho de 2019, no Rio de Janeiro.
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