quinta-feira, 30 de março de 2017

Magrinho que virou pandorga


Moacyr Scliar


Pandorgas por Uberti

Eu estava a fim nem sei de quê. Nem sei de quê, mesmo, de tão cheio que eu estava: cheio do trabalho, cheio do patrão.

Foi aí que me veio uma ideia da pandorga. Que boa ideia, cara! Como foi que me ocorreu? Não sei. Olhando para os meus braços, acho. Estavam finos como varas; e as pernas também. Cuidado com o vento de setembro, dizia a velha minha mãe, vai acabar te carregando. Feito pandorga. Aí está: Pandorga.*

Fui falar com o patrão. Pandorga? Gostou da ideia. Riu. Foi a primeira vez que vi aquele homem rindo. Agora, só agora, sei por que ele ria. É que estava se lembrando dele menino, soltando pandorga. Isto foi há muito tempo. Antes de ele mandar na gente.

Ele gostando da ideia, eu deitei no chão, de barriga para cima. Ele trouxe um rolo de barbante grosso, forte. Eu abri bem os braços, e estiquei as pernas.

O primeiro nó foi no meu pulso esquerdo. Um nó duplo, muito forte. Ainda não esqueci como é que se dá nós, ele disse, sorrindo sempre. Eu ri também. Pela primeira vez estávamos nos entendendo. Ele não estava me chamando de preguiçoso nem de ladrão. Estava brincando comigo. Aquilo estava muito bom.

O segundo nó foi no tornozelo esquerdo, o terceiro no tornozelo direito – estes, nós simples. O nó do pulso direito foi duplo, como o do esquerdo. Estava pronta a armação.

Eu sempre fiz pandorga com papel forte; e disse isto para ele, que pandorga, para mim, tinha de ser de papel forte. Mas ele piscou o olho; tenho outra ideia, disse, e então eu pensei que ele queria usar a minha pele, esta pelanca frouxa que me ficou nos braços e no pescoço, depois que emagreci.

Mas não era a pele, não. Era o pano da túnica, desta túnica folgada que eu uso. Fiquei contente – ele agora não estava criticando a minha roupa, ele estava bem satisfeito com a minha roupa.

Esticou o pano e costurou-o em torno ao cordel que ia dos pulsos aos tornozelos. Trabalhou bem, sorrindo sempre, e assobiando. Estava feliz mesmo.

Aí fez a guia da pandorga: três pedaços de barbante. Um preso em laçada ao meu pescoço (ele cuidou para não apertar muito). Os outros dois pedaços, prendeu aos meus pulsos. Pescoço, pulso, pulso: os três pontos mais convenientes. Ele sabia mesmo fazer uma pandorga. Deu um nó, juntando as pontas livres dos barbantes, e estava pronta a guia.

Nesta ele amarrou a ponta de um grande rolo de barbante. Tenho duzentos metros aqui, ele disse, e eu não acreditei. Depois vi que era mesmo verdade.

Então me pôs de pé, recomendando que não me mexesse. Fiquei duro, imóvel, o vento forte de setembro enfunando a túnica. Estávamos no gramado em frente à metalúrgica. Um lindo gramado. Uns cem metros de gramado.

Ele correu, desenrolando o barbante. De súbito, senti um forte abalo. Eu subia! Funcionava, eu, como pandorga! E já flutuava sobre bosques e colinas, a pandorga!

Lá de baixo ele abanava para mim. Eu não podia abanar em resposta, mas esperava que ele visse o sorriso radiante em meu rosto. Porque eu via a felicidade no rosto dele. Era a primeira vez que eu o via alegre, aquele homem pequeno e triste.

Deu dois puxões na guia; quase me estrangula! Mesmo assim respondi, atirando duas vezes a cabeça para trás. Era o nosso código, enfim, nos entendíamos.

Ele me dava linha. Eu agora estava muito alto; o vento forte me sacudia todo. Mas eu aguentava firme. Eu era a armação.

Anoitecia. Eu sabia que ele tinha de voltar para casa... Ele voltou. Amarrou a ponta do barbante ao tronco de uma árvore. Ali fiquei, toda a noite, flutuando no espaço negro, olhando as luzes lá embaixo, e as estrelas acima de minha cabeça.

Bonito, aquilo.

Eu não queria mais descer. Agora que sabia das coisas, eu não queria mais descer.

E não desci: até hoje estou aqui.

Aquele pontinho escuro no céu? Sou eu.

*****

(Do livro “Cadernos de Cultura Gaúcha – 5 contistas”)


Moacyr Scliar por Fraga

Nascimento:  23 de março de 1937, Porto Alegre, Rio Grande do Sul
Falecimento: 27 de fevereiro de 2011, Porto Alegre, Rio Grande do Sul

*Pandorga, denominação, no Rio Grande do Sul, de pipa, quadrado, papagaio, arraia.




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