Rubem Braga, Fernando Sabino, Vinicius de Moraes e Sérgio Porto
Em 1944, alguns anos antes, Rubem
Braga acompanhou a Força Expedicionária Brasileira à Itália, para cobrir, como
repórter, a segunda guerra mundial. Só dois anos depois, ao retornar para o
Brasil, pôde ler o longo poema que Vinicius, saudoso, escrevera em sua
homenagem:
A meu amigo Rubem Braga
Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo,
amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem.
Há, nessa carta-poema, todos os
elementos de simplicidade cotidiana que Braga costumava retratar em suas
crônicas. Vinicius brindou o amigo, “Correspondente de guerra, 250 FEB,
atualmente em algum lugar da Itália”, com uma coletânea de assuntos caros ao
cronista, distante do mar de Ipanema e privado de ver as moças de maiô. Em
“Mensagem a Rubem Braga”, a valorização das coisas desimportantes e banais
aparece como uma forma de resistir à brutalidade da guerra. Assim, quase nada
há de relevante nas notícias, o que revela o espírito dessa amizade que zelava
pelos detalhes da vida simples: fulana está linda, compadre está doente,
Drummond tem escrito ótimos poemas, um amigo continua apaixonado, é tempo de
caju e abacaxi. Até mesmo o cardápio do almoço é compartilhado.
Além disso, a partir deste poema, é
possível fazer o recorte de dois grandes tópicos da obra de Rubem Braga – o
deslumbre causado pela mulher e o engajamento social:
Que outro dia vi
Elza-Simpatia-é-quase-Amor.
Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
Vi um menino em coma de fome
(coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia)
Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
Vi um menino em coma de fome
(coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia)
A resposta literária de Braga ao
poeta, no entanto, só viria mais tarde, quando Vinicius já morava em Los Angeles em seu
primeiro posto diplomático. Rubem, poeta bissexto, escreveu-lhe Bilhete para
Los Angeles. Mas diferente da saudação honrosa que recebeu do parceiro, Braga
deixou transparecer o carinho viril ao qual às vezes era dada a amizade:
Tu, que te chamas Vinicius
De Moraes, inda que mais
Próprio fora que Imorais
Quem te conhece chamara ‒
Avis rara!
De Moraes, inda que mais
Próprio fora que Imorais
Quem te conhece chamara ‒
Avis rara!
Tens uns olhos de menino
Doce, bonito e ladino
E és um calhordaço fino:
Só queres amor e ócio,
Capadócio!
Doce, bonito e ladino
E és um calhordaço fino:
Só queres amor e ócio,
Capadócio!
Quando a viola ponteias
As damas cantando enleias
E as prendes em tuas teias ‒
Tanto mal que já fizeste,
Cafajeste!
As damas cantando enleias
E as prendes em tuas teias ‒
Tanto mal que já fizeste,
Cafajeste!
Apesar do que, faz falta
Tua presença, que a malta
Do Rio pede em voz alta:
Deus te dê vida e saúde
Em Hollywood!
Tua presença, que a malta
Do Rio pede em voz alta:
Deus te dê vida e saúde
Em Hollywood!
Muito adiante, já com sessenta anos
completos, Vinicius voltou a homenagear o amigo, dessa vez com um soneto – do
jeito que Braga gostava. Soneto do sessentenário de Rubem Braga é uma reflexão
sobre a vida em decassílabos, de ritmo muito marcado pela aliteração do fonema
/s/:
Soneto do sessentenário de Rubem Braga
Sessenta anos não são sessenta dias
Nem sessenta minutos, nem segundos…
Não são frações de tempo, são fecundos
Zodíacos, em penas e alegrias.
Nem sessenta minutos, nem segundos…
Não são frações de tempo, são fecundos
Zodíacos, em penas e alegrias.
São sessenta cometas oriundos
Da infinita galáxia, nas sombrias
Paragens onde Deus resgata mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.
Da infinita galáxia, nas sombrias
Paragens onde Deus resgata mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.
São sessenta caminhos resumidos
Num só; sessenta saltos que se tenta
Na direção de sóis desconhecidos
Num só; sessenta saltos que se tenta
Na direção de sóis desconhecidos
Em que a busca a si mesma se contenta
Sem saber que só encontra tempos idos…
Não são seis, nem seiscentos: são sessenta!
Sem saber que só encontra tempos idos…
Não são seis, nem seiscentos: são sessenta!
Mas a grande homenagem de Rubem
Braga ao amigo, Vinicius não pôde ler. A crônica Recado de primavera, de 1980,
é uma reverência póstuma ao poeta, que morrera alguns meses antes, na banheira
de sua própria casa:
Meu caro Vinicius de Moraes,
Escrevo-lhe aqui de
Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes.
É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou
placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de
Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera – acho
que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois
veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de
espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris […].
Escrever ao amigo, então, é um modo de reaproximá-lo, como se vivo
estivesse. Em seguida, Braga toma refúgio na descrição dos passarinhos. Aos
olhos de um ornitólogo amador, os tico-ticos construindo ninho são um claro
sinal da chegada da primavera, que, ao destronar o inverno, carrega em si o
símbolo da transformação, ainda que esta, em particular, não seja tão alegre
assim. No último parágrafo, ele se despede:
O tempo vai passando,
poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus
versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as
ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.
E para finalizar:
Quando Vinicius compôs a letra da
clássica Garota de Ipanema, Braga fez uma paródia que costumava apresentar
pelos bares:
Olha que coisa mais triste,
Coisa mais sem graça.
É esse velhote
Que vem e que passa,
Num pesado balanço,
A caminho do bar...
Matéria condensada do texto “Os cães engarrafados”,
do Blog
quarta capa, de Guilherme Tauil.
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