terça-feira, 21 de março de 2017

Poemas e crônicas entre amigos



Rubem Braga, Fernando Sabino, Vinicius de Moraes e Sérgio Porto

Em 1944, alguns anos antes, Rubem Braga acompanhou a Força Expedicionária Brasileira à Itália, para cobrir, como repórter, a segunda guerra mundial. Só dois anos depois, ao retornar para o Brasil, pôde ler o longo poema que Vinicius, saudoso, escrevera em sua homenagem:

A meu amigo Rubem Braga

Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever
Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos
Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer
Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros
Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia
Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio
E apesar de hoje estar chovendo, 

amanhã certamente o céu se abrirá de azul
Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa
E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas
E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto
Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres
Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem.

Há, nessa carta-poema, todos os elementos de simplicidade cotidiana que Braga costumava retratar em suas crônicas. Vinicius brindou o amigo, “Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália”, com uma coletânea de assuntos caros ao cronista, distante do mar de Ipanema e privado de ver as moças de maiô. Em “Mensagem a Rubem Braga”, a valorização das coisas desimportantes e banais aparece como uma forma de resistir à brutalidade da guerra. Assim, quase nada há de relevante nas notícias, o que revela o espírito dessa amizade que zelava pelos detalhes da vida simples: fulana está linda, compadre está doente, Drummond tem escrito ótimos poemas, um amigo continua apaixonado, é tempo de caju e abacaxi. Até mesmo o cardápio do almoço é compartilhado.

Além disso, a partir deste poema, é possível fazer o recorte de dois grandes tópicos da obra de Rubem Braga – o deslumbre causado pela mulher e o engajamento social:

Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. 
Foi para os Estados Unidos
E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca
Seu riso me deu vontade de beber: a tarde
Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga
Vi um menino em coma de fome 

(coma de fome soa esquisito, parece
Que havendo coma não devia haver fome: mas havia)

A resposta literária de Braga ao poeta, no entanto, só viria mais tarde, quando Vinicius já morava em Los Angeles em seu primeiro posto diplomático. Rubem, poeta bissexto, escreveu-lhe Bilhete para Los Angeles. Mas diferente da saudação honrosa que recebeu do parceiro, Braga deixou transparecer o carinho viril ao qual às vezes era dada a amizade:

Tu, que te chamas Vinicius
De Moraes, inda que mais
Próprio fora que Imorais
Quem te conhece chamara ‒
Avis rara!

Tens uns olhos de menino
Doce, bonito e ladino
E és um calhordaço fino:
Só queres amor e ócio,
Capadócio!

Quando a viola ponteias
As damas cantando enleias
E as prendes em tuas teias ‒
Tanto mal que já fizeste,
Cafajeste!

Apesar do que, faz falta
Tua presença, que a malta
Do Rio pede em voz alta:
Deus te dê vida e saúde
Em Hollywood!

Muito adiante, já com sessenta anos completos, Vinicius voltou a homenagear o amigo, dessa vez com um soneto – do jeito que Braga gostava. Soneto do sessentenário de Rubem Braga é uma reflexão sobre a vida em decassílabos, de ritmo muito marcado pela aliteração do fonema /s/:

Soneto do sessentenário de Rubem Braga

Sessenta anos não são sessenta dias
Nem sessenta minutos, nem segundos…
Não são frações de tempo, são fecundos
Zodíacos, em penas e alegrias.

São sessenta cometas oriundos
Da infinita galáxia, nas sombrias
Paragens onde Deus resgata mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.

São sessenta caminhos resumidos
Num só; sessenta saltos que se tenta
Na direção de sóis desconhecidos

Em que a busca a si mesma se contenta
Sem saber que só encontra tempos idos…
Não são seis, nem seiscentos: são sessenta!


Mas a grande homenagem de Rubem Braga ao amigo, Vinicius não pôde ler. A crônica Recado de primavera, de 1980, é uma reverência póstuma ao poeta, que morrera alguns meses antes, na banheira de sua própria casa:

Meu caro Vinicius de Moraes,

Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera – acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris […].

Escrever ao amigo, então, é um modo de reaproximá-lo, como se vivo estivesse. Em seguida, Braga toma refúgio na descrição dos passarinhos. Aos olhos de um ornitólogo amador, os tico-ticos construindo ninho são um claro sinal da chegada da primavera, que, ao destronar o inverno, carrega em si o símbolo da transformação, ainda que esta, em particular, não seja tão alegre assim. No último parágrafo, ele se despede:

O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.

E para finalizar:

Quando Vinicius compôs a letra da clássica Garota de Ipanema, Braga fez uma paródia que costumava apresentar pelos bares:

Olha que coisa mais triste,
Coisa mais sem graça.
É esse velhote
Que vem e que passa,
Num pesado balanço,
A caminho do bar...
  

Matéria condensada do texto “Os cães engarrafados”, 
do Blog quarta capa, de Guilherme Tauil.





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