Não é possível ser inspirado por uma ideia
e seguir como se nada tivesse acontecido.
Sempre gostei da sala de aula. Assim
que terminei a residência médica, fiz concurso para a função de professor
auxiliar de ensino da então Faculdade Católica de Medicina, uma escola que vi
crescer e aprendi a amar como uma das extensões da minha vida que mais gostei
de viver. O convívio diário com os estudantes me ensinou o encanto do olho
brilhando quando alguma coisa que dizemos mexe com os sentimentos de quem, sem
perceber, fecha o virtuoso círculo pedagógico, porque a relação aluno/professor
só se completa quando os dois voltam diferentes para a aula do dia seguinte. Não
é possível inspirar ou ser inspirado por uma ideia nova e seguir a vida como se
nada tivesse acontecido.
Como não existem duas turmas iguais,
porque as pessoas, felizmente, são diferentes, o desafio da conquista de
confiança e afeto se renova em cada novo trimestre. O sentimento é idêntico ao
descrito por artistas veteranos que confessam que o frio na barriga ao entrar
no palco os acompanha até a aposentadoria ou a morte, que não por acaso são
sinônimos para quem faz o que faz no limite da paixão.
Algumas turmas são especialmente
difíceis e a conquista, mais desafiadora. Na nossa faculdade, a maioria dos
grupos, quando chega para a cirurgia torácica, já passou por cirurgia plástica,
urologia e ortopedia, de modo que, se uma determinada turma é mais complicada,
as noticias chegam antes.
Foi assim com aquela turma, que o
nosso insubstituível Roberto Chem, com seu humor ácido, definiu como “um grupo
marca diabo, uma gangue, e mais do que isso, uma gangue com líder!”
Já tinha quase esquecido essa
advertência quando entrei na sala para uma turma nova e soube, instantaneamente,
que eles tinham chegado.
O alarido que ignorou a entrada do
professor, as roupas despojadas, as camisetas do Sepultura (uma banda que em
algum momento do século passado simbolizou rebeldia), os tênis luminosos no
calcanhar repousando nas cadeiras da frente, tudo, enfim, apontava para uma
barra pesada a desafiar o convencional. Tendo percebido que alguma coisa tinha de
ser feita agora, tive uma ideia boa: “Pessoal, além de cirurgia torácica, tenho
um interesse antropológico: como há uma diversidade de caminhos para se chegar
à nossa escola, gostaria que vocês me ajudassem numa pesquisa paralela: Qual é
a procedência dos nossos atuais acadêmicos? Não se assustem porque a pesquisa é
simples. Só peço que vocês se comportem aqui como se estivesse nas suas
próprias casas e saberei, imediatamente, da origem social de vocês.”
Apanhados de surpresa, sem chance de
ensaiar uma pose de rebelde irreverente, todos se retraíram e, em 10 segundos, tínhamos
uma turma de gente jovem e bonita, em atitude compatível com estudantes de uma
Faculdade Federal de Medicina. Acho que foi o primeiro confronto daquela turma
com uma realidade que a circunstância inesperada apenas antecipou. Quando lhes
disse que queria agradecer em nome dos futuros pacientes que tratariam, porque
os enfermos sabem como ninguém valorizar uma atitude respeitosa que lhes
dediquemos num momento de fragilidade máxima pela doença, soube,
instantaneamente, que os tinha conquistado.
O “marca diabo” sabidamente é
inteligente, até porque de outra maneira não sobreviveria.
Direcionar para o bem aquela energia
aparentemente maligna é um dos maiores e mais gratificantes desafios para
qualquer professor.
J.J. Camargo é cirurgião
torácico e diretor
do Centro de
Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre
(Do Caderno Vida de Zero Hora, abril 2017)
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