Juremir Machado da
Silva
Todo ano, na Semana Santa, eu sou
invadido por uma onde de nostalgia que em desconcerta. Volto
a Palomas na imaginação para soltar pandorga*. Eram dias deliciosamente
estranhos: na Sexta-Feira Santa ficava mais proibido do que nunca dizer
palavrão. Qualquer briga era pecado. Como era difícil para sete irmãos passarem
um dia inteiro sem se engalfinhar um pouquinho. Sábado de aleluia era uma
zoeira infernal. Domingo de Páscoa era doce, muito doce, um sonho. Era a única
época do ano em que comíamos peixe. Não se fazia jejum. Mas quase. A sexta era
muito sagrada. Tudo devia ser comedido. Nada mais marcante, porém, do que as
pandorgas colorindo o céu tão azul.
O maior castigo era chover na Semana
Santa. Ou não ter vento. As pandorgas existiam em dois formatos: bombas
(redondas) e marimbos (retangulares). Nunca aprendi a fazer uma que levantasse.
Chorava de raiva ao vê-las se espatifar no chão. As colas (rabos) eram de
lençol velho. Os gomos, de papel encerado. Eu amava vermelho e amarelo.
Poderoso era quem conseguia centenas de metros de barbante. Depois de certa
metragem, porém, fazia “barriga”, salvo com ventos muito bons. O grande medo
era que guris malvados colocassem gilete no rabo da suas pandorgas para
derrubar as dos mais vulneráveis como eu.
Nunca esqueci de um tempo difícil
vivido por meu pai. Faltava dinheiro. Não havia como comprar papel e barbante
para sete pandorgas. Seria uma Semana Santa de tristeza. Meu pai sumiu no meio
da tarde da quinta. Era possível sentir sua ausência como o vento assobiando.
Chorei.
Tenho certeza de que já contei isso.
É que sinto vontade de chorar a cada ano quando me lembro disso. Sou piegas.
Quando meu pai retornou, trazia quatro bombas e três marimbos enormes. Havia
formatos de gênero: bombas para meninas, marimbos para meninos. Admiramos nosso
pai como um verdadeiro herói naquele dia. Via felicidade nos olhos dele quando
saltamos sobre as pandorgas. Havia um ar de menino no seu rosto já enrugado.
Ele só conseguia advertir:
‒ Cuidado para não rasgar... Cuidado
para não rasgar...
Tempos depois, soube que meu pai
havia comprado fiado as sete pandorgas. Na época, comprar fiado, necessidade da
qual quase ninguém escapava, tinha sempre algo de humilhante. Custar para pagar
era considerado vergonhoso. Comprar pandorgas a prazo era um luxo criticável,
quase uma irresponsabilidade. Eu, que era preguiçoso e só pensava em ler e
jogar de bola a baralho, tive vontade de trabalhar para ajudar meu pai a saldar
a sua dívida. Senti mais orgulho dele do que jamais. Não sabia explicar muito
bem o que sentia. Compreendia intuitivamente que ele havia se exposto pela
nossa alegria de crianças. Quando penso em meu pai, o cabo Vito, penso em pandorgas.
Ele nos ensinou honestidade,
solidariedade e generosidade. Não é pouca coisa. Era um homem simples, produto
do seu tempo. Quando vejo uma pandorga dançando nos céus do Rio Grande do Sul,
nessas viagens que faço por aí palestrando, uma alegria toma conta de mim.
‒ É a alma do meu pai – digo para mim
mesmo.
*Denomina-se Pipa em quase todo Brasil.
(No Correio do Povo –
abril de 2017)
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