segunda-feira, 1 de maio de 2017

Ele foi apenas um rapaz latino-americano



(Belchior: 1947 - 2017)

A notícia

Foi na madrugada de ontem, sábado, 29, para domingo, 30 de abril de 2017, que o cantor e compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, conhecido simplesmente como Belchior foi encontrado morto, na casa em que vivia no bairro Santo Inácio, em Santa Cruz do Sul, RS.

Desde 2008, o artista não tinha paradeiro certo. Morou em hotéis e, em um deles, chegou a deixar um carro no estacionamento ao desaparecer. Em 2013, passou por Porto Alegre e se encontrou com o jornalista Juremir Machado da Silva, o que resultou em uma coluna que descreve o quanto o músico parecia confuso quanto à sua carreira e destino. Procurado pela justiça por falta de pagamento de pensão alimentícia e outras dívidas, Belchior, ao lado de sua namorada, vivia se escondendo, fugindo de dívidas e na busca de um isolamento.

Suas letras, para muitos de seus fãs, são mais atuais do que nunca, pois abordam questões sociais e políticas, são contestatórias, melancólicas, sem deixar o amor e a irreverência de lado. Nos últimos anos, mesmo cultuado, Belchior recusou convites para voltar aos palcos. Popularizam-se no Ceará e em outras cidades os dizeres “Volta, Belchior” em muros.

 Ele estava morando há pelo menos meio ano em Santa Cruz do Sul junto com sua companheira, Edna Assunção Araújo. Antes disso, teria passado semanas na Ecovila Karaguatá, de Rio Pardinho e meio ano na casa do amigo Dogival Duarte.

O resultado da necropsia apontou rompimento da aorta, principal artéria humana. Segundo a polícia, o músico teria morrido dormindo no sofá, sem sinas de violência.


Apenas um rapaz

Juremir Machado da Silva

Farei uma frase extremas: Belchior foi o melhor compositor que o Brasil já teve. Melhor do que Chico Buarque, Caetano Veloso e todos os outros. Morreu em Santa Cruz do Sul. Era um dos meus poucos ídolos. Guardarei a imagem do homem tranquilo e inteligente que conheci em Porto Alegre, em 2013, quando fui procurado, na Rádio Guaíba, por sua mulher Edna. Arrependo-me de não ter sabido ajudá-lo. Não sei se era possível. Gostaria de ter penetrado no mistério da sua decisão de não cantar mais. Tenho escrito muitos livros. Adoraria escrever duas biografias, a de Lupicínio Rodrigues e a de Belchior, que obviamente intitularia “Apenas um Rapaz Latino-Americano”. Não as escreverei.

(...)

O que se quebrou dentro de Belchior em algum momento que o fez abandonar tudo? Não sei. A minha hipótese é que ele resolveu viver profundamente o que cantou. Penso nele como um daqueles filósofos da antiguidade. Ele cantou os sonhos e desesperança da minha geração como ninguém. (...)

Algo que me impressionou nas poucas conversas com Belchior foi a sua cultura. De que fugiu? De que se escondia? Não creio que fosse de dívidas. Com facilidade teria voltado a ganhar dinheiro em shows lotados. Creio que fugia da sociedade e do espetáculo e da vulgaridade da indústria cultural.

(Partes de uma crônica publicada em sua coluna
 no jornal Correio do Povo)


Quando Belchior ainda era um estudante de Medicina sem bigode, no começo dos anos 1970, ele assistiu a uma aula inaugural do filósofo cearense Augusto Pontes, que, logo de saída, apresentou-se assim:

– Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem parentes militares.

Dizer essas coisas no tempo da ditadura era uma rara rebeldia. Fagner, que, mais tarde, seria primeiro parceiro e depois desafeto de Belchior, também estava na aula. Achou aquilo tão engraçado, que caiu na gargalhada, fazendo com que todos os alunos se voltassem para ele. Belchior, quietinho que era, quietinho ficou. Mas guardou a frase com cuidado, a fim de usá-la em outra oportunidade. E a usou, construindo um dos clássicos da MPB.

(...)

David Coimbra, em Zero Hora, setembro de 2018.

 Apenas um Rapaz Latino-Americano*

Belchior

Eu sou apenas um rapaz Latino-Americano,
Sem dinheiro no banco,
Sem parentes importantes
E vindo do interior.

Mas trago de cabeça uma canção do rádio,
Em que um antigo compositor baiano
Me dizia: Tudo é divino, tudo é maravilhoso.

Mas trago de cabeça uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano
Me dizia: Tudo é divino, tudo é maravilhoso.

Tenho ouvido muitos discos,
Conversado com pessoas,
Caminhado meu caminho,
Papo, som, dentro da noite
E não tenho um amigo sequer,
Que ainda acredite nisso não,
Tudo muda!
E com toda razão.

Eu sou apenas um rapaz Latino-Americano,
Sem dinheiro no banco,
Sem parentes importantes
E vindo do interior.

Mas sei, sei que tudo é proibido
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê.

Mas sei que tudo é proibido,
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê.

Não me peça que eu lhe faça
Uma canção como se deve:
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém.

Mas não se preocupe, meu amigo,
Com os horrores que eu lhe digo,
Isso é somente uma canção.
A vida, realmente, é diferente
Quer dizer, ao vivo é muito pior.

E eu sou apenas um rapaz Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Por favor, Não saque a arma no "saloon"
Eu sou apenas o cantor.

Mas se depois de cantar,
Você ainda quiser me atirar.
Mate-me logo!
À tarde, às três que à noite
Tenho um compromisso
E não posso faltar,
Por causa de vocês.

Mas se depois de cantar,
Você ainda quiser me atirar,
Mate-me logo!
À tarde, às três, que à noite
Tenho um compromisso
E não posso faltar
Por causa de vocês.

Eu sou apenas um rapaz Latino-Americano
Sem dinheiro no banco,
Sem parentes importantes
E vindo do interior.

Mas sei que nada é divino
Nada, nada é maravilhoso
Nada, nada é secreto
Nada, nada é misterioso, não
Na na na na na na na na...

*A música acima pode ser ouvida na voz do próprio Belchior, ela está na Internet.


Belchior não era apenas um rapaz latino-americano

Professor relembra convivência com o cantor durante 40 dias
 em seu apartamento em Porto Alegre


Uma das últimas fotos de Belchior,
por César Augusto Ferrari Martinez, 2012

Quando me aconteceu o improvável, reagi com uma ética que surpreendeu até mesmo a mim. Ele estava na minha casa e eu não contei nada a ninguém! Ele era capa de jornais, reportagem em rede nacional, assunto nas redes sociais: afinal, onde estava o Belchior? Sentado no balcão da minha cozinha, tomando uma taça de vinho e conversando comigo sobre João Cabral de Melo Neto, Bob Dylan e João Goulart (“sempre pensavam que éramos parentes”).

Não, não foi sonho ou delírio (nem mesmo alucinação!). As geografias do Belchior nunca foram simples. Na voz do cantor o espaço, mais do que o tempo, era possibilidade. Ele saiu da nortista Sobral para o centro do país, rodou o Brasil e o mundo como embaixador de uma voz que era simultaneamente cearense, nordestina, brasileira e latina, até refugiar-se na pacata e uruguaia Artigas. Quando fomos nos topar, em novembro de 2012, Belchior era o trend topic da imprensa nacional. Um dia antes, havia sido visto circulando no bairro Moinhos de Vento. Eu recém havia defendido minha dissertação de mestrado sobre jovens em situação de rua quando encontrei o cantor e sua companheira Edna após uma noite vagando pelo bairro Floresta, Porto Alegre.

Levei-os para meu apartamento, ofereci cama, banho, roupas, comida, descanso e o mais importante: blindagem à cobertura jornalística. Aí ficaram por cerca de 40 dias, tempo em que compartilhamos jantares, dedilhados de violão, narrativas de vida e outros momentos assustadoramente íntimos. Prometi a mim mesmo e selei o pacto com meus familiares e amigos mais íntimos que não falaríamos nada. Futuramente, uma reportagem de uma revista de circulação nacional viria à tona mapeando os últimos passos de Belchior. Havia uma lacuna, um espaço de tempo não coberto, justamente o quando Belchior havia sido meu hóspede. Na foto da reportagem, ele aparecia com meu blusão, que com alegria cedi quando foram embora. Pensei comigo que no momento da sua morte eu compartilharia tudo publicamente.

Ocorre que ele se foi e eu me peguei desprevenido. Parte de mim ainda imaginara que eu poderia encontrá-lo, revê-lo, voltar às conversações que tanto me fizeram felizes nessas poucas semanas juntos. Não reclamo! Tive a oportunidade de ter em minha casa o meu grande ídolo. Mas por outro lado, lamento imensamente, pois sei que a tristeza e a impotência tiveram participação no fim de sua jornada terrena. Obrigado, Mestre! Ainda ressona forte o grave da tua voz me dizendo “Professor”. Espero que teu legado artístico e político nos dê fôlego para respirar em tempos que vivemos comedimento democrático. Aos antigos, relembremo-lo. Aos jovens, escutemo-lo. Quanto a mim, posso dizer que “pela Geografia aprendi que há no mundo um lugar onde um jovem como eu pode amar e ser feliz”.

César Augusto Ferrari Martinez
Professor na Universidade Federal de Pelotas
De Santiago (Chile)

(Correio do Povo, de 2 de maio de 2017)

Belchior em Murta, Sobradinho, RS


Belchior teve um grande protetor em Santa Cruz do Sul, o radialista Dogival Duarte. Quando Dogival precisou de ajuda para abrigar o ídolo, recorreu ao professor de filosofia Ubiratan Trindade.

Bira recebeu Belchior em sua casa. Depois de três meses, deu problema com Edna, mulher do cantor, sempre de temperamento difícil e querendo proteger o marido de perigos imaginários. Surgiu uma solução: transferi-los para uma chácara, em Murta, interior de Sobradinho.

Edna não queria que a identidade de Belchior fosse revelada. Ele foi apresentado ao caseiro como um professor cearense de filosofia. Colou. Belchior podia falar horas sobre Santo Tomás de Aquino.

Bira lembra com saudades das grandes conversas com Belchior sobre Fernando Pessoa, grandes filósofos, literatura. O cantor vivia de vinho, peixes e azeite de oliva.

O caseiro viu Belchior, com um violão emprestado, compor e cantar como um pássaro.

– Esse professor de filosofia canta muito – disse.

Eu estive na casa de Bira, em Santa Cruz, há algum tempo. Ele se lembra:

– Fiz um galeto. Me estressei um pouco. Queria te contar sobre Belchior, mas esqueci.

Outros me contaram que ele estava em Santa Cruz. Acompanhei de longe.

Bira tem uma galeria de fotos de Belchior em Murta.

Pode-se começar por este bilhete do ídolo para Marina, filha do anfitrião, estudante de Artes.


(Do Blog do Juremir Machado da Silva)

O ato final


(Foto do Cultura ao Minuto)

Às 9h50min desta terça (2 de maio de 2017), Antonio Carlos Belchior, morto no último domingo (30 de abril), foi enterrado enquanto seus familiares cantavam "Mucuripe", uma de suas primeiras composições, em parceria com Raimundo Fagner, e também nome de uma praia de Fortaleza, no Ceará.

O enterro aconteceu no cemitério Parque da Paz, em subúrbio ao sul da cidade. Cerca de 300 pessoas estiveram presentes, entre familiares, amigos e imprensa.

Edna Prometeu, a companheira de Belchior nos últimos anos, chegou e passou o tempo toda sentada em uma cadeira de rodas. Sua mão direita tremeu incessantemente.

Também estavam lá alguns irmãos do cantor e Mikael e Camila Belchior, os dois filhos que ele teve com Angela Henman, a única mulher com quem ele se casou no papel.

Missa

Um pouco mais cedo, boa parte das cerca de 300 pessoas que acompanhavam a missa para Belchior choraram quando o conjunto que tocava canções religiosas entoou clássicos do compositor.

"Hora do Almoço", "Alucinação", "Como Nossos Pais" e, finalmente, "A Palo Seco", quando o caixão foi fechado, arrancaram lágrimas, coro e aplausos dos presentes no anfiteatro ao ar livre do Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza, no Ceará, entre 7h30min e 8h30min.

Chorando o tempo todo, Edna Prometeu, já não se sustentava sozinha em pé. A cerimônia aconteceu após o velório, que atraiu 8.010 pessoas e durou a noite toda na capital cearense, desde as 15h de segunda.

No palco, além do padre e do corpo do artista, cerca de 30 familiares e amigos acompanharam sentados a leitura de textos bíblicos. "Eu sou o alfa e o ômega, o princípio e o fim", disse certo trecho.

(Folhapress)

O recado de Belchior que ninguém ouviu

(Excerto)

Por Carlos Guimarães*

Belchior morreu no anonimato, aos 70 anos, numa despedida até certo ponto previsível de quem não fez muita concessão às tentações do sucesso fácil. Nunca foi midiático, nunca foi agradável e nunca fez média para se tornar mais ou menos bem-sucedido. No final da vida, entre idas e vindas, parecia um peixe fora d´água neste mundo pós-moderno de ostentação, problematização, relativização e chatices e tal. Perdido em sua alucinação de suportar os dia a dia, possivelmente não suportava mais um mundo onde importa muito mais aparentar algo do que ser algo. Belchior não conseguiu fazer um retrato deste cotidiano, provavelmente por não se importar muito com ele. Morreu do mesmo jeito que surgiu para a música: um itinerante, um andarilho trôpego entre paixões arrebatadoras, deslizes efêmeros e devaneios concretos. Morreu punk, como fora punk. Morreu com um recado ao seu estilo, de que toda sinceridade é possível nas tentações das relações fugazes, como, de fato, pode se traduzir o mundo atual. Morreu jovem, talvez em alguma curva no seu próprio caminho, com todo som, toda a fúria e toda a pressa de viver, gritando desesperadamente em português, mas sem ninguém ouvir.

*Jornalista da Rádio Guaíba.

(No Correio do Povo de 6 de maio de 2017)



4 comentários:

  1. Ótimo texto dindo, como sempre, parabéns!! Bjao da MOne

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    1. Que bom receber um comentário da distante Nova Zelãndia, onde mora a minha querida afilhada Simone.
      Obrigado, um abraço e um beijo no coração de Nilo da Silva Moraes.

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  2. Muito obrigada por compartilhar. Muito emocionante. Brenna Rodrigues - Fortaleza -Ceara
    Atualmente a filha dele Vannick tem cantado tão lindamente pelos palcos da cidade, traz tantas lembranças do pai...

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  3. Muito obrigado pelo comentário, e sucesso a Vannick pela carreira de cantora e que mantenha acesa veia musical do pai.

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