Daquilo que vivemos sobra apenas a
memória. Seja boa ou ruim, linda ou feia, essa memória permanece e vive sempre
se intrometendo no presente. Como se sabe, o presente é volátil, nunca o
pegamos, ou as coisas estão no futuro ou o passado. O presente é uma sanga, um
lajeado por onde as águas passam todos os dias, todos os meses, todos os anos,
todos os segundos. Então, onde estaria o presente? Ah, amigos, não consigo
responder, a única resposta plausível é que venho aqui todas as semanas falar
de lembranças incrustadas na minha pedra da memória. Recuerdos que estão lá,
então preciso contar e recontar como um campeiro que prepara seu mate ao final
do dia, depois de desencilhar, e fica ali, pesaroso, falando com o cusco
enrodilhado. É minha sina, mas confesso que é o meu alimento, o que me sustenta
nessas invernias, por entre o junho que me gela os ossos corroídos, os músculos
cansados, a pele áspera, e me embaça os olhos vidrados de tanto mirar
horizontes.
Uma lembrança recorrente em mim é das
fogueiras nas noites frias de junho, nas noites de São João, quando era apenas
um toco de gente lá na minha Vila Rica. Ainda ouço os estalos da madeira sendo
consumida pelas chamas que ganhavam o cimo da fogueira e lá em cima no céu
soltavam chispas para nosso regozijo embaixo, na terra, aos gritos, olhando os
amigos e os vizinhos alumiados pelos clarões na noite escura. Quando a fogueira
estava no auge, o campo se iluminava e a silhueta das pessoas adquiria um tom
avermelhado. Parecia que a gente também pegava fogo por dentro, pelos internos,
dava uma vontade de gritar, pular, sair correndo. Uma noite saí mesmo correndo,
eu e a Belinha, e nos atracamos aos beijos atrás das taquareiras. Éramos duas
crianças, nem sabíamos beijar, claro, mas as almas que se procuram se
encontram, dão abrigo uma a outra, para que ali a outra faça o seu ninho. Eu
fiz meu ninho na alma da Belinha, por anos, mas depois aquela ave tão amada
bateu asas, ganhou o mundo e eu fiquei lá, sem ela para pular as brasas de mãos
dadas, sem os seus beijos roubados, sem seus olhos de trigais maduros.
Éramos tão felizes, nós, a gurizada
campeira filha de pequenos trabalhadores rurais, changueiros, tropeiros, gente
que tinha pouco, mas que vivia satisfeita dentro dos remendos da pobreza. Por
isso, hoje, choro quando vejo meninos brincando nesses arraiais urbanos aqui na
Capital, alguns deles aqui na minha rua. Choro, mas não é de tristeza, mas sim
de alegria por ter vivido tudo aquilo e me vejo neles outra vez. Será que essas
crianças sentem agora o mesmo que eu sentia? Acho que sim, quando se é guri o
mundo é uma brasa incandescente, como aquelas flamas multicores que crepitam e
sobem, sobem sempre para o céu, e nossa alma vai junto, como uma bailarina
envolta em luz e sonhos.
Que estalem troncos dentro da noite,
que crepitem chamas, que o fogo ilumine o futuro. Que possamos sentir de novo o
gostinho doce do quentão que se tomava em velhas xícaras de porcelana, do
pinhão cozido, das rapadurinhas, da canjica, dos bolos de fubá. Quando a noite
se encharca de luz vejo outra vez os amigos, meus pais, meu irmão e até os
olhos das Belinha. Queria morrer assim, aquecido e feliz, numa noite de São
João...
Na coluna Campereada,
por Paulo Mendes,
no Correio do Povo,
julho de 1017.
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