segunda-feira, 3 de julho de 2017

Brasas da memória



Daquilo que vivemos sobra apenas a memória. Seja boa ou ruim, linda ou feia, essa memória permanece e vive sempre se intrometendo no presente. Como se sabe, o presente é volátil, nunca o pegamos, ou as coisas estão no futuro ou o passado. O presente é uma sanga, um lajeado por onde as águas passam todos os dias, todos os meses, todos os anos, todos os segundos. Então, onde estaria o presente? Ah, amigos, não consigo responder, a única resposta plausível é que venho aqui todas as semanas falar de lembranças incrustadas na minha pedra da memória. Recuerdos que estão lá, então preciso contar e recontar como um campeiro que prepara seu mate ao final do dia, depois de desencilhar, e fica ali, pesaroso, falando com o cusco enrodilhado. É minha sina, mas confesso que é o meu alimento, o que me sustenta nessas invernias, por entre o junho que me gela os ossos corroídos, os músculos cansados, a pele áspera, e me embaça os olhos vidrados de tanto mirar horizontes.

Uma lembrança recorrente em mim é das fogueiras nas noites frias de junho, nas noites de São João, quando era apenas um toco de gente lá na minha Vila Rica. Ainda ouço os estalos da madeira sendo consumida pelas chamas que ganhavam o cimo da fogueira e lá em cima no céu soltavam chispas para nosso regozijo embaixo, na terra, aos gritos, olhando os amigos e os vizinhos alumiados pelos clarões na noite escura. Quando a fogueira estava no auge, o campo se iluminava e a silhueta das pessoas adquiria um tom avermelhado. Parecia que a gente também pegava fogo por dentro, pelos internos, dava uma vontade de gritar, pular, sair correndo. Uma noite saí mesmo correndo, eu e a Belinha, e nos atracamos aos beijos atrás das taquareiras. Éramos duas crianças, nem sabíamos beijar, claro, mas as almas que se procuram se encontram, dão abrigo uma a outra, para que ali a outra faça o seu ninho. Eu fiz meu ninho na alma da Belinha, por anos, mas depois aquela ave tão amada bateu asas, ganhou o mundo e eu fiquei lá, sem ela para pular as brasas de mãos dadas, sem os seus beijos roubados, sem seus olhos de trigais maduros.

Éramos tão felizes, nós, a gurizada campeira filha de pequenos trabalhadores rurais, changueiros, tropeiros, gente que tinha pouco, mas que vivia satisfeita dentro dos remendos da pobreza. Por isso, hoje, choro quando vejo meninos brincando nesses arraiais urbanos aqui na Capital, alguns deles aqui na minha rua. Choro, mas não é de tristeza, mas sim de alegria por ter vivido tudo aquilo e me vejo neles outra vez. Será que essas crianças sentem agora o mesmo que eu sentia? Acho que sim, quando se é guri o mundo é uma brasa incandescente, como aquelas flamas multicores que crepitam e sobem, sobem sempre para o céu, e nossa alma vai junto, como uma bailarina envolta em luz e sonhos.

Que estalem troncos dentro da noite, que crepitem chamas, que o fogo ilumine o futuro. Que possamos sentir de novo o gostinho doce do quentão que se tomava em velhas xícaras de porcelana, do pinhão cozido, das rapadurinhas, da canjica, dos bolos de fubá. Quando a noite se encharca de luz vejo outra vez os amigos, meus pais, meu irmão e até os olhos das Belinha. Queria morrer assim, aquecido e feliz, numa noite de São João...

Na coluna Campereada, por Paulo Mendes,
no Correio do Povo, julho de 1017.




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