terça-feira, 11 de julho de 2017

Nós e os bichos


Por Ivan Ângelo


Gravura Soza

A bela crônica de Walcyr Carrasco sobre seu cão doente, que mereceu uma extraordinária repercussão entre os leitores desta revista* e bateu todos os recordes de cartas dos leitores, ficou conversando comigo por alguns dias, acordando lembranças, ligando outros casos, pessoas, personagens, autores, obras, parentes, amigos. Como são marcantes as relações de humanos com bichos de casa!

O caso mais próximo, relatado quase todos os dias em crônica de jornal, é o do escritor Carlos Heitor Cony, que dividiu com seus leitores da Folha de S. Paulo a sofrida agonia da sua cadela Mila. Sentado à mesa de trabalho, sem coragem para sair do lado de Mila, deitada a seus pés, pois toda vez que se afastava ela chorava de dor e provavelmente de medo do que lhe acontecia, Cony começou a escrever, primeiro sobre ela, e logo sobre a vida, suas lembranças, a infância, o pai, e puramente para fazer companhia à doente acabou escrevendo um romance – coisa que não fazia havia quinze anos! Voltou à literatura com um dos seus melhores livros, Quase Memória. Escreveu-o em 23 dias, tempo da agonia e morte de Mila. Foi um caso de amor, segundo ele, “relação que nunca houve com mais ninguém”.

Variados níveis de afeto levam escritores a falar sobre bichos. Desde a simples ternura evocativa, como a de Manuel Bandeira (“Teresa, você é a coisa mais linda que eu já vi, / inclusive o porquinho-da-índia que eu ganhei quando tinha três anos.”), ou a lição de vida do poema de Belmiro Braga (“Se entre amigos encontrei cachorros, / Entre cachorros encontrei-te, amigo.”), até a sofisticada ideia do poeta T.S. Eliot sobre os três nomes dos gatos: um é o nome doméstico, para uso diário, como Chaninha ou Gigi; outro, chique, para impressionar visitas, como Ramsés ou Shakespeare; e o terceiro é o nome que o próprio gato se dá e que guarda no silêncio de seus passos aveludados.

Dentre os bichos personagens de grandes obras destaco dois, pela dramaticidade: a cachorra Baleia, de Vidas Secas, cuja agonia, entre sonhos de gordas preás, é descrita com muita emoção pelo geralmente seco Graciliano Ramos; e o papagaio Lulu, ave de estimação e confidências da simples doméstica Félicité, em Un Coeur Simple, de Gustave Flaubert. Ao morrer Lulu, ela manda empalhá-lo, e quando ela própria agoniza o vê flutuando no espaço como um grande Espírito Santo de asas abertas. E acrescento mais um, pelo sarcasmo do autor, Machado de Assis: Quincas Borba, cão que tem o mesmo nome do dono filósofo, é herdado pelo enfermeiro Rubião junto com uma grande fortuna, e juntos definham até a miséria. E lembro ainda outro personagem, não de uma grande obra, mas que me fez chorar quando menino: Veludo, do poema de Luiz Guimarães, cão que o novo dono leva para afogar no mar; ao voltar a casa, constata que perdeu na operação o cordão de ouro com o medalhão de sua adorada mãe, amaldiçoa o cão pela perda, ouve barulhos na porta, abre e encontra o cão nas últimas, o qual abre a boca com o cordão e o medalhão, entrega-os, e morre.

Na vida à minha volta tocou-me há pouco a tristeza de um vizinho pelo desaparecimento da sua calopsita, que vivia solta em casa, voejava, pousava nos ombros das pessoas, nunca saía pela rede das janelas e um dia foi-se com um macho que frequentou minha janela e deve ter-lhe feito propostas tentadoras.

Meu irmão, que morria lentamente, e sabia disso, pedia todos os dias: “Cuidem dos meus passarinhos”. Até as enfermeiras repetiam a frase.

Termino com a morte do Til. Éramos crianças, nosso cachorro estava doente de raiva, preso no quintal da casa. Proibido chegar perto, fazer festas, e ele nem queria, tremia, babava. Não era ainda tempo de pet shops e veterinários. De madrugada, quando todos dormiam, ouvi meu pai sair e, em seguida, barulhos surdos, ganidos, silêncio, passos, um tempo longo, água correndo no tanque, depois meu pai entrou em casa e ouvi seu choro na cozinha, durante muito tempo, até que adormeci.

*(Em Veja São Paulo – dezembro de 2016)


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