Folclorista completa 90 anos de amor ao pago
Mas que tal, Xiru Velho! Pois então
colhes hoje (12 de julho de 2017) mais uma moranga nesta grande lavoura da
vida? Que beleza! Receba do povo do Rio Grande um forte abraço. Um pequeno
gesto de reconhecimento pelo teu valor, pela tua garra charrua em sempre
defender as coisas da nossa terra, a pata de cavalo e com a lança firme na mão.
Noventa anos. Feliz aniversário, Paixão Côrtes! É o que te desejamos nós,
campeiros e urbanos, gente do campo e da cidade, de todas as classes sociais,
de todas as profissões e de todas as idades. Nós te idolatramos, pois teu nome
é uma metáfora e o teu trabalho é um símbolo. Grande e eterno Paixão. Muito
obrigado por ter despertado em nós o amor às tradições. Tu nos ensinaste a
compreender e a valorizar o folclore do pago. Hoje, 12 de julho, tu estás de
aniversário, mas o presente é nosso. Tu vieste para nos guiar nesses caminhos
tortuosos da cultura regional, do aprendizado, das pesquisas gauchescas e dos
estudos rio-grandenses. Obrigado, velho tropeiro da cultura gaúcha. Teu legado
será sempre uma luz que nos repontará hoje e pelos outros anos que virão.
Quanta coisa linda fizeste! Que belos e marcantes gestos o amigo protagonizou,
como o da Chama Crioula, o da estátua do Laçador, o resgate das danças e das
músicas, os livros, os programas de rádio, a divulgação mundo afora. Hoje
estamos aqui, juntos e irmanados, te desejando muitos anos de vida, te
agradecendo num fraterno abraço de luz. Xiru Velho, hoje o dia é teu. Por isso,
decidimos chamar este dia, esta quarta-feira histórica, de “Quarta-feira do
Paixão”.
Ator: Laçador, símbolo da cidade
→ Se durante toda a sua vida João
Carlos D´Ávila Paixão Côrtes sempre foi extremamente sincero e autêntico, em
vários momentos mostrou talento em outras artes, como na música, na dança e na
representação cênica. Provou esta capacidade em diversos momentos, como no
filme “Um Certo Capitão Rodrigo”, do diretor Anselmo Duarte, interpretando o
papel de Pedro Terra, baseado na obra “O Tempo e o Vento”, do escritor
cruz-altense Érico Veríssimo.
Isso mostra que o homem campeiro, mas
culto, sempre soube que as artes são ferramentas primordiais para difundir e
valorizar a cultura de um povo. Este senso estético do homem que, com o tempo
viraria símbolo da tradição gaúcha, sempre pode ser visto em todos os seus
trabalhos artísticos, pela qualidade e pelo belo.
Ao posar, em 1956, para o escultor
Antônio Caringi, Paixão Côrtes moldou à imagem de gaúcho típico do Rio Grande,
uma representação e, a partir dali, virou uma identidade. O modelo se confundiu
com o próprio homem, transformado no “Laçador”, símbolo de Porto Alegre, a
Capital do Estado.
Idealista: Inventor da Chama Crioula
→ A vida de Paixão Côrtes,
nascido em Santana do Livramento em 12 de julho de 1927, é cheia de idealismos.
Esta característica do jovem nascido na Fronteira tem seu auge e momento
decisivo em 1947. O ato de institucionalizar a Chama Crioula, junto com alguns
colegas do Colégio Júlio de Castilhos, o Julinho de Porto Alegre, acendeu nos
gaúchos o orgulho pela sua cultura.
Ao inventar a Chama Crioula, retirando a
centelha numa estopa embebida em querosene e amarrada num cabo de vassoura,
acabou incutindo em outros colegas a paixão pela defesa intransigente dos usos
e costumes da gente campeira do Rio Grande. Naquela época, Paixão era apenas um
estudante cheio de ideais, com vontade de transformar coisas, de valorizar as
músicas, as danças e todo o aparato cultural de sua terra, que, logo após o
pós-guerra, consumia tudo que vinha do exterior, principalmente dos Estados
Unidos. Então, entendeu que era a hora de dar um grito de basta, como já fizera
há quase 200 anos o índio Sepé Tiaraju, nas Missões, e dizer que esta terra
tinha dono. O resto da história todos sabem.
Folclorista: Acervo vai muito além
→ Pesquisadores de todas as áreas
e de todos os rincões do Brasil e do mundo terão sempre, na obra de João Carlos
D´Ávila Paixão Côrtes um manancial sério, profundo e profícuo sobre as coisas
do Rio Grande do Sul. Durante décadas, ele percorreu as regiões gaúchas
observando, conversando e, principalmente, registrando, aquilo que considerava
importante perpetuar para as atuais e vindouras gerações.
Armado de gravador, de câmera fotográfica,
filmadora Super 8, Paixão resgatou em muitos confins do Estado, em suas várias
regiões, como Serra, Litoral e Campanha, aspectos curiosos da nossa cultura
popular que estavam esquecidos e que corriam o risco de serem perdidos. Entre
elas, estão as tradicionais manifestações religiosas, como o Terno de Reis,
além de folguedos e danças trazidas pelos imigrantes.
Segundo seu filho Carlos, o acervo até
aqui obtido pelo pai é extremamente vasto, vai muito além do que já foi
publicado em livros, livretos e opúsculos e transmitidos em palestras, em
entidades tradicionalistas espalhadas por todo o Brasil.
Pesquisador: Reinado da gaita
→ São inestimáveis para a cultura
gaúcha as pesquisas desenvolvidas por Paixão Côrtes ao longo de sua trajetória.
Entre elas a música feita no Rio Grande do Sul desde os seus primórdios, como
no livro “Aspectos da Música e da Fonografia Gaúchas”, de 1984. Segundo estudos
de Paixão Côrtes, a música do pago pode ser dividida em dois momentos: “Antes
de depois da gaita (Acordeon)”.
A primeira fase vem posterior à metade do
século XVIII, até além da metade do século XIX, quando são destacadas as
presenças de instrumentais dos violeiros (10 ou 12 cordas) e rabequistas (o
violino rústico). Depois, o som aerófono do acordeão, suplanta a voz do cantor
do período anterior e os temas gauchescos passam a ser mais musicais do que
vocais.
Assim, predomina o aspecto sonoro
bailável. “O pago começa a assistir ao reinado da gaita na transição dos
entreveros da Guerra do Paraguai (1865/1870)”. Além disso, resgatou períodos da
música, como o ciclo do gramofone (com surgimento da casa A Elétrica), ciclo da
música radiofônica e o ciclo do disco Long Play (LP).
Mestre: Árdua pedregosa tropeada
→ Quando chega aos 90 anos, o
velho “Tropeiro da Tradição”, como diz seu filho Carlos Paixão Côrtes, decidiu,
por meio de uma carta histórica escrita em 2 de julho e publicada dois dias
depois no Correio do Povo, dar um descanso nas atividades públicas, pois já não
tem mais a energia de antes. O homem que gostava de camperear, andar de pago em
pago em busca de manifestações folclóricas, de falar em público, de cantar e
dançar, está cansado.
“Vai dar uma pausa na atuação como homem
público, pois os anos de tropeadas lhe causaram desgaste de saúde. Já não
consegue atender igualmente a todas as demandas e não quer preterir ninguém,
mas precisa se fortalecer”. O Rio Grande vai entender este gesto em que o
folclorista parece pedir desculpas por não conseguir mais atender os muitos
pedidos de entrevista, de participações aqui e ali.
Fica o ensinamento do mestre, que sabe a
hora de se recolher, de se dedicar à família e poupar energias. A sabedoria do
campeiro que sabe manejar as rédeas do destino, que não pode cansar demais o
cavalo nesta árdua e pedregosa tropeada.
Bailarino: Dança se espraiaram
→ Alegre e bem-humorado, Paixão
sempre brilhava os olhos quando ia desempenhar a chula, uma dança masculina que
exige força, agilidade e coreografia. Mas não ficou nisso. Foi atrás das danças
coletivas, resgatou, registrou e ensinou e essas depois, foram se espraiando
pelos CTGs e outras entidades de tradição. Embora seja um precursor do
tradicionalismo, Paixão sempre deixou claro que o mais importante é o folclore
e não as regras impostas.
Para o pesquisador, o que sempre importou
é a manifestação popular genuína. Mais recentemente publicou diversos livretos
com fotografias e explicações claras sobre essas danças. Em suas palestras,
distribuía para a plateia e para as entidades os livros explicativos.
A maioria foi editada sem apoio
institucional, apenas de apoiadores, amigos e incentivadores da cultura. Num
desses livretos, intitulado “Nossos Bailares – Sociais, urbanos e campestres”,
faz um apanhado do que aconteceu de 1600 a 1800, com descrições de músicas e
danças. Foram publicados diversos livros com representações e desenhos das
coreografias.
Texto de Paulo
Mendes,
no Correio do Povo de
12 de julho de 2017.
Foto Agência RBS
Palavras de Carlos Côrtes, filho de Paixão Côrtes:
Findou o tempo do meu pai. Mas
não o tempo de trabalho de Paixão Côrtes. Acho que, pelo reconhecimento, pelas
homenagens que estão sendo feitas, o trabalho dele deve ser pesquisado e
conhecido para que se entenda como foi construída a identidade do gaúcho. Se
hoje nós vemos uma criança dançando o Pezinho, é graças a ele e ao Barbosa
Lessa, que puderam resgatar, por meio da música e das danças, o orgulho de ser
gaúcho.
*Paixão Côrtes: 1927-2018.
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