Júlia Lopes de
Almeida
Ilustração de Alex Trimurti
A caolha era uma mulher magra, alta,
macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos
cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo
reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo,
de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo
contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de
desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e
cariados.
O seu aspecto infundia terror às
crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária
magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído
o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao
lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo
denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que a tornava repulsiva
aos olhos de toda gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo
filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a roupa para os
hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho,
enquanto era pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no
mesmo prato; à proporção que ia crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando
na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um
ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer
fora…
Ela fingiu
não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho
vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos
outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as amarguras da
existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de
sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe! Mas… os beijos foram
escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a
nos braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face
direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a
beijar-lhe a mão!
Ela
compreendia tudo e calava-se.
O filho não
sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola
pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir com a mãe,
a chamá-lo – o filho da caolha.
Aquilo
exasperava-o; respondia sempre:
– Eu tenho
nome!
Os outros riam e chacoteavam-no; ele
se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo
a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam
assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma
ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o
filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas, meninas
novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o coração do pobre
Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as
goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a denominá-lo como os
outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor
delas, diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
– Taí, isso é
para o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o
presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os outros, com
inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:
– Filho da
caolha, filho da caolha!
O Antonico pediu à mãe que não o fosse
buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam
aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os
olhos para o Antonico e faziam caretas de náuseas.
A caolha
suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu para
sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o intrigavam e
malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de
marceneiro aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo,
como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e
ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de
venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou
prudente mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do
feijão e do arroz expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua
saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa,
ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre
zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava
a mãe; esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse
nos braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o
mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate. A
infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não
deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma
certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o mestre dizia: sr.
Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a
pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que
principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez
de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele
tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia
retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava!
Amava como um louco a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha
adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico
voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um
dia, em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no
quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento de
esquecida ternura!
Aquele
beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu
querido filho! Pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia
consigo:
– Sou muito
feliz… o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num
papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo
a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em
amarguradas conjecturas.
Ao princípio
pensava: – É o pudor.
Depois
começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela
moreninha confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse
completamente da mãe! Vinham explicações confusas, mal alinhavadas: lembrava a
mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e bem
compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora
da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que
a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu
rancor se voltou para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua
desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe todas as
carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela!
Lamentava-se por ter nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de
separar-se dela; iria considerar-se humilhado continuando sob o mesmo teto;
havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite,
furtivamente…
Salvava assim a responsabilidade do
protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia
em troca do seu consentimento e amor…
Passou um dia
terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o
expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal,
lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico pensou: “Ao dizer a
verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal
criatura?” Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com
verdadeira dor. A caolha levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o
pus na face, disse:
– Limpe a
cara, mãe…
Ela sumiu a
cabeça no avental; ele continuou:
– Afinal,
nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
– Foi uma
doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!
– E é sempre
a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
– Porque não
vale a pena; nada se remedeia…
– Bem! Agora escute: trago-lhe uma
novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da loja… já aluguei um
quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se
tem necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de
costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os rapazes criados à
sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha
lançado naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um
olhar desconfiado e medroso.
A caolha se levantou e, fixando o
filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:
– Embusteiro! O que você tem é
vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de ser mãe de
semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde,
surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente e cordata; ia
com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe
dera a caolha.
Ela o acompanhou, fechou com estrondo
a porta, e vendo-se só, encostou-se cabaleante à parede do corredor e desabafou
em soluços.
O Antonico
passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro
desejo foi voltar a casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico da mãe,
faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho
direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo
arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude altiva, o seu
dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua;
sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para
dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no rosto; via toda a
cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra semelhante.
Providencialmente, lembrou-se da
madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe
que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.
A madrinha escutou-o comovida;
depois disse:
– Eu previa isso mesmo, quando
aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não quis, aí está!
– Que
verdade, madrinha?
Encontraram a caolha a tirar umas
nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz se
arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela,
esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e
vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou
imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do
Antonico começou logo:
– O teu rapaz foi suplicar-me que te
viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à
tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!
– Cala-te! –
murmurou com voz apagada a caolha.
– Não me calo! Essa pieguice é que te
tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!
O afilhado
tornou-se lívido; e ela concluiu:
– Ah, não tiveste culpa! Eras muito
pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava
distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo
olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços,
com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
– Pobre
filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!
*****
(Os cem melhores
contos brasileiros do século – Objetiva)
Júlia Lopes de Almeida
Nascimento:
24 de setembro de 1862, Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro;
Falecimento:
30 de maio de 1934, Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
Júlia Valentina da Silveira Lopes
de Almeida, nascida no Rio de Janeiro em 1862, demonstrou desde cedo interesse
para a escrita e, apesar de a sociedade não considerar adequado esse trabalho
para mulheres, ela teve o privilégio de receber o apoio do pai e, mais tarde,
do marido.
Figura menor no criticado cânone
da academia brasileira, que ainda inviabiliza muitas escritoras, publicou seu
primeiro texto na Gazeta de Campinas, em 1881. Trabalhou como jornalista,
dramaturga, cronista, romancista, além de escrever contos, inclusive infantis.
Participou das reuniões para formação da Academia Brasileira de Letras, mas
ficou de fora por ser mulher. Seu marido, Filinto de Almeida, diz-se, foi
eleito em sua homenagem.
Nas peças que escreveu, o drama
das personagens femininas aponta para a falta de perspectiva e resignação do
casamento e as possibilidades de realização na vida de solteira. Isso é
representado através do abandono ou impossibilidade dos estudos da futura
esposa, o sonho de realização profissional que lhe é proibido. E, na
mulher que foge do casamento arranjado, faz-se sentir a esperança. Também
mostra o papel da própria mulher que reproduz o machismo se imbuindo do poder
opressor, representando o controle que possui e a humilhação que proporciona.
Quando descreveu cidades como
Santos e Rio de Janeiro em suas crônicas, é possível sentir o clima de um
Brasil recém-república no qual as concepções urbanas higienistas (física e
moral), que se espelhavam em padrões europeus, somados com um quê de belle
époque brasileira, davam um tom de encantamento com uma urbanidade produzida e
excludente. Ecos de crítica também acabam ressoando em seus textos, contudo há
sempre uma limitação latente: Júlia Lopes de Almeida possuía claras demarcações
em seus escritos.
Pode-se pensar em concessões que
se obrigava a praticar para garantir seu lugar, mesmo que diminuído, entre os
escritores da época. Contudo, é importante refletir sobre qual tipo de mulher
Júlia representa: uma mulher branca, privilegiada e letrada, que, embora
defenda a educação e vida profissional das mulheres, muitas vezes associa a
necessidade destas conquistas ao papel que a mulher deveria exercer na época. O
caráter restrito de sua crítica reflete um posicionamento que evita o
enfrentamento direto, utiliza um discurso que pode até ser considerado
atenuado, porque tenta se inserir num meio hostil, podendo falar de suas
reflexões, vez por outra, por suas personagens e narrações, como em A Caolha.
A narrativa mostra um grande sofrimento da Mãe, mas mesmo assim não deixa transparecer. Só amor de Mãe supera a ingratidão do filho quando ele se apaixona é nem o culpa. Final surpreendente.Muito bom esse conto!!!
ResponderExcluirSem dúvida foi uma MULHER com todas as condições de fazer parte da Academia Brasileira de letras , ficou de fora não por falta de talento, mas por ser MULHER, é lamentável,mas suas crônicas pode expressar suas idéias.
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