Até os dez anos, Luis Gama era uma
criança como as outras. A mãe trazia-o nos braços extremosamente; o pai parecia
ter por ele um grande afeto.
Foi ao completar aquela idade que o
destino lhe mudou brutalmente a vida, arrastando-o de súbito pelo mundo, como
os temporais arrastam pelo mar os barcos sem vela e sem leme.
Leiam a sua história.
Entre os pais de Luís Gama havia
profundas diferenças.
A mãe era uma negra quitandeira. O pai,
um fidalgo português.
Ela trabalhava. Ele, um estroina,
jogava todo o dinheiro que lhe caía nas mãos.
O jogo, meus meninos, é realmente uma
das maiores ruínas do mundo. O homem que joga acaba perdendo a própria
dignidade.
O pai de Luís Gama viciou-se tanto no
jogo que, para ter com que jogar, passou a cometer todas as baixezas.
Um dia, entrou ele, pela manhã, em
casa da quitandeira. Sentou o filho nas pernas, beijou-o, fez-lhe os carinhos
do costume e, de repente, com a maior naturalidade, perguntou-lhe:
‒ Não queres ir com o papai, num
barco, ver os navios que estão no porto?
O pequeno pulou de contente. Tinha
uma vontade louca de andar no mar e uma vontade maior de entrar num navio.
‒ Quero! Quero! Vamos.
A mãe correu a lavá-lo e a vesti-lo.
Meia hora depois, a mãozinha segura à
mão do pai, lá saiu Luís pelas ruas, pulando ingenuamente, alegremente, como um
pássaro feliz.
Isso se passava na Bahia, no 10 de
novembro de 1840.
No porto havia dois ou três navios. O
Saraiva, um patacho(1) que carregava
escravos, estava ancorado no fundo da enseada.
– Queres ir àquele navio que está
mais distante? Perguntou o pai ao filho, apontando-lhe o patacho.
– Quero!
Para quem sonhava com um passeio no
mar, quanto mais longe estivessem os navios, mais encantador seria o passeio.
Um escaler levou-o ao Saraiva.
O garotinho é a vivacidade em corpo e
alma. Quer ver tudo e tudo quer saber. Ao pôr os pés a bordo, percorre o barco
de ponta a ponta, pegando, examinando, indagando miudeza por miudeza.
Mas, em certo momento, sente que o
pai não está ao seu lado. Em vão procura-o aqui, ali. Corre à popa. Corre à
proa. Corre depois à amurada e o vê, já distante, fugindo no escaler que os
trouxera.
– Papai! Grita aflitamente.
– Vou à terra, filhinho, mas volto
já, respondeu-lhe de longe o fidalgo.
Com aquela pouca idade, Luís sabia o
pai que tinha. Num relance, compreendeu a cilada miserável em que caíra.
E, sufocado de lágrima, brada numa
grande explosão de revolta:
– Papai, o senhor me vendeu!
Parecia mentira, mas era verdade. Para
ter com cem ou duzentos mil réis com que pudesse jogar, o pai havia vendido o
filho pequenino!
O negócio fora feito na véspera. Toda
aquela história de passeio no mar tinha sido inventada para entregar a criança
ao comandante do navio.
O resto do dia o pequeno não parou de
chorar.
Atiraram-no depois para o convés, no
meio dos escravos que iam ser vendidos no Rio de Janeiro.
À tarde, o barco saiu barra afora.
O pobrezinho, que só conhecia a
doçura dos carinhos da mãe, tremeu diante do longo inferno que se desenrolou
aos seus olhos.
Ao chegar ao Rio de Janeiro,
levaram-no com outros escravos para ser vendido no mercado.
O alferes Antônio Cardoso, negociante
de negros em São Paulo ,
compra-o para revender. Mas Luís é tão pequeno que, em São Paulo , ninguém o
quer.
O alferes deixa-o então em casa para
serviços de limpeza, de copa, lavagem e engomagem de roupa.
Não há, portanto, meus meninos, quem
tenha, na vida, menos possibilidade de estudar e muito menos de conseguir um
nome ilustre.
Mas a força de vontade é uma virtude
tão poderosa que nem a própria desgraça consegue vencê-la.
Tinha Luís dezessete anos quando um
menino rido chegou para estudar em casa do alferes. Era Antônio Rodrigues Prado
Júnior, que os pais mandavam a São Paulo para continuar os estudos.
O estudante e o escravo, em pouco
tempo, se tornaram bons camaradas.
No quarto do estudante, o escravo
recebeu as primeiras lições de leitura e de escrita. E isso foi rápido: em três
ou quatro meses o filho da quitandeira aprendeu o que os outros meninos
aprendem em dois ou três anos.
Tempos depois, sente ele necessidade
de vida menos caseira do que aquela. Foge de casa e vai ser soldado.
No quartel, a sua sorte é a mesma
sorte áspera e penosa. Em seis anos, não consegue chegar senão a cabo de
esquadra e, uma vez, é metido por muito tempo na enxovia por ter repelido o
insulto de um superior.
Acontece que, certo dia, é escalado
para ser ordenança do chefe de polícia, o conselheiro Francisco Maria de Sousa
Furtado de Mendonça.
Quem vai olhar para um pobre
ordenança? Mas, há em Luís Gama
uma tal distinção e uma tal dignidade no proceder, que o conselheiro se
impressiona.
Fazem-se amigos. Furtado de Mendonça
abre-lhe a biblioteca.
O antigo escravo vive de livro na
mão. Não há um instante de folga que não o aproveite para estudar.
Não vai a parte alguma, não se
diverte, não conhece os gozos do mundo. Vive, por alta noite, de toquinho de
vela aceso, olhos nos livros, devorando-os, devorando-os.
Mais tarde, deixa a farda. Ora serve
de escrivão na polícia, ora faz cópias para cartórios.
É a época mais dura da sua vida.
Publica nos jornais os seus primeiros versos; defende réus no júri; faz
discursos na rua, em favor da liberdade dos escravos.
Fala-se no seu nome por toda a
cidade. A sua fama espalha-se pelo país. E, com tudo isso, às vezes, não tem um
pedaço de pão para comer.
Mas é preciso estudar mais do que
nunca, para colocar-se à altura do nome que conquistou. E estuda
incessantemente e trabalha como um louco.
E, estudando e trabalhando, conseguiu
tudo que quis ser: poeta, jornalista, advogado, orador, o mais ardente e o mais
sincero defensor da raça negra que houve no seu tempo.
E conseguiu tudo isso com uma
grande ferida aberta no coração, ferida que a sorte nunca lhe permitiu que
sarasse. E que, desde aquele dia infeliz em que o pai o atirou para o convés do
navio negreiro não teve mais notícias de sua mãe.
A vida inteira passou a pedir
notícias dela e a procurá-la. E o destino cruel nunca mais consentiu que ele a
visse. Às vezes, sonhava ouvindo-lhe a voz; delirava, outras vezes, vendo-a ao
seu lado carinhosamente. Mas tudo sonho, sonho e nada mais.
(Do livro “Cazuza”,
de Viriato Corrêa)
(1) patacho
– pequeno navio de vela, de dois mastros.
Luís Gonzaga Pinto da Gama foi um
rábula, orador, jornalista e escritor brasileiro. Nascido de mãe negra livre e
pai branco; foi, contudo, feito escravo aos 10, e permaneceu analfabeto até os
17 anos de idade. Nascimento:
21 de junho de 1830, Salvador,
Bahia - Falecimento:
24 de agosto de 1882, São Paulo,
São Paulo.
NÃO É POSSÍVEL QUE ELE FOSSE ANALFABETO ATÉ OS 17 ANOS , POIS COMO VIMOS NA LEITURA DE SUA VIDA , SEU PAI LHE TINHA MUITA ESTIMA ATÉ OS 10 ANOS, TEMPO SUFICIENTE PARA TER APRENDIDO ALGO. E PARA TER AS HABILIDADES QUE TINHA NO VERNÁCULO SERIA IMPOSSÍVEL NESSE TÃO POUCO TEMPO.
ResponderExcluirNÃO ACREDITO QUE ELE TENHA SIDO VENDIDO E SIM ENTREGUE A PESSOAS QUE PUDESSEM CRIÁ-LO E DAR UMA EDUCAÇÃO ADEQUADA ATÉ QUE PUDESSE CAMINHAR SOZINHO. ALUNO DE DIREITO QUE CHEGOU NA CASA DE "SEUS SENHORES" OU PADRINHOS , CHEGOU PARA JUSTAMENTE FORTALECER ESSES ESTUDOS. DO TEMPO QUE SE DIZ QUE ELE FOI ALFABETIZADO ATÉ SUA ENTRADA NO MILITARISMO SERIA MUITO POUCO PARA TER A HABILIDADE QUE TINHA PARA DEPOIS SER AMANUENSE.
ResponderExcluirAmigo Marcelo, é só ler todas as biografias de Luiz Gama que estão na Internet, todas contam essa mesma versão, e Viriato Correa deve ter feito uma consulta histórica para colocar esse fato no seu livro.
ResponderExcluirAlém disso, o escritor Viriato Correa foi seu contemporâneo e devia saber muito bem o que estava dizendo.
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