quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A história de Luís Gama



Até os dez anos, Luis Gama era uma criança como as outras. A mãe trazia-o nos braços extremosamente; o pai parecia ter por ele um grande afeto.

Foi ao completar aquela idade que o destino lhe mudou brutalmente a vida, arrastando-o de súbito pelo mundo, como os temporais arrastam pelo mar os barcos sem vela e sem leme.

Leiam a sua história.

Entre os pais de Luís Gama havia profundas diferenças.

A mãe era uma negra quitandeira. O pai, um fidalgo português.

Ela trabalhava. Ele, um estroina, jogava todo o dinheiro que lhe caía nas mãos.

O jogo, meus meninos, é realmente uma das maiores ruínas do mundo. O homem que joga acaba perdendo a própria dignidade.

O pai de Luís Gama viciou-se tanto no jogo que, para ter com que jogar, passou a cometer todas as baixezas.

Um dia, entrou ele, pela manhã, em casa da quitandeira. Sentou o filho nas pernas, beijou-o, fez-lhe os carinhos do costume e, de repente, com a maior naturalidade, perguntou-lhe:

‒ Não queres ir com o papai, num barco, ver os navios que estão no porto?

O pequeno pulou de contente. Tinha uma vontade louca de andar no mar e uma vontade maior de entrar num navio.

‒ Quero! Quero! Vamos.

A mãe correu a lavá-lo e a vesti-lo.

Meia hora depois, a mãozinha segura à mão do pai, lá saiu Luís pelas ruas, pulando ingenuamente, alegremente, como um pássaro feliz.

Isso se passava na Bahia, no 10 de novembro de 1840.

No porto havia dois ou três navios. O Saraiva, um patacho(1) que carregava escravos, estava ancorado no fundo da enseada.

– Queres ir àquele navio que está mais distante? Perguntou o pai ao filho, apontando-lhe o patacho.

– Quero!

Para quem sonhava com um passeio no mar, quanto mais longe estivessem os navios, mais encantador seria o passeio.

Um escaler levou-o ao Saraiva.

O garotinho é a vivacidade em corpo e alma. Quer ver tudo e tudo quer saber. Ao pôr os pés a bordo, percorre o barco de ponta a ponta, pegando, examinando, indagando miudeza por miudeza.

Mas, em certo momento, sente que o pai não está ao seu lado. Em vão procura-o aqui, ali. Corre à popa. Corre à proa. Corre depois à amurada e o vê, já distante, fugindo no escaler que os trouxera.

– Papai! Grita aflitamente.

– Vou à terra, filhinho, mas volto já, respondeu-lhe de longe o fidalgo.

Com aquela pouca idade, Luís sabia o pai que tinha. Num relance, compreendeu a cilada miserável em que caíra.

E, sufocado de lágrima, brada numa grande explosão de revolta:

– Papai, o senhor me vendeu!

Parecia mentira, mas era verdade. Para ter com cem ou duzentos mil réis com que pudesse jogar, o pai havia vendido o filho pequenino!

O negócio fora feito na véspera. Toda aquela história de passeio no mar tinha sido inventada para entregar a criança ao comandante do navio.

O resto do dia o pequeno não parou de chorar.

Atiraram-no depois para o convés, no meio dos escravos que iam ser vendidos no Rio de Janeiro.

À tarde, o barco saiu barra afora.

O pobrezinho, que só conhecia a doçura dos carinhos da mãe, tremeu diante do longo inferno que se desenrolou aos seus olhos.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, levaram-no com outros escravos para ser vendido no mercado.

O alferes Antônio Cardoso, negociante de negros em São Paulo, compra-o para revender. Mas Luís é tão pequeno que, em São Paulo, ninguém o quer.

O alferes deixa-o então em casa para serviços de limpeza, de copa, lavagem e engomagem de roupa.

Não há, portanto, meus meninos, quem tenha, na vida, menos possibilidade de estudar e muito menos de conseguir um nome ilustre.

Mas a força de vontade é uma virtude tão poderosa que nem a própria desgraça consegue vencê-la.

Tinha Luís dezessete anos quando um menino rido chegou para estudar em casa do alferes. Era Antônio Rodrigues Prado Júnior, que os pais mandavam a São Paulo para continuar os estudos.

O estudante e o escravo, em pouco tempo, se tornaram bons camaradas.

No quarto do estudante, o escravo recebeu as primeiras lições de leitura e de escrita. E isso foi rápido: em três ou quatro meses o filho da quitandeira aprendeu o que os outros meninos aprendem em dois ou três anos.

Tempos depois, sente ele necessidade de vida menos caseira do que aquela. Foge de casa e vai ser soldado.

No quartel, a sua sorte é a mesma sorte áspera e penosa. Em seis anos, não consegue chegar senão a cabo de esquadra e, uma vez, é metido por muito tempo na enxovia por ter repelido o insulto de um superior.

Acontece que, certo dia, é escalado para ser ordenança do chefe de polícia, o conselheiro Francisco Maria de Sousa Furtado de Mendonça.

Quem vai olhar para um pobre ordenança? Mas, há em Luís Gama uma tal distinção e uma tal dignidade no proceder, que o conselheiro se impressiona.

Fazem-se amigos. Furtado de Mendonça abre-lhe a biblioteca.

O antigo escravo vive de livro na mão. Não há um instante de folga que não o aproveite para estudar.

Não vai a parte alguma, não se diverte, não conhece os gozos do mundo. Vive, por alta noite, de toquinho de vela aceso, olhos nos livros, devorando-os, devorando-os.

Mais tarde, deixa a farda. Ora serve de escrivão na polícia, ora faz cópias para cartórios.

É a época mais dura da sua vida. Publica nos jornais os seus primeiros versos; defende réus no júri; faz discursos na rua, em favor da liberdade dos escravos.

Fala-se no seu nome por toda a cidade. A sua fama espalha-se pelo país. E, com tudo isso, às vezes, não tem um pedaço de pão para comer.

Mas é preciso estudar mais do que nunca, para colocar-se à altura do nome que conquistou. E estuda incessantemente e trabalha como um louco.

E, estudando e trabalhando, conseguiu tudo que quis ser: poeta, jornalista, advogado, orador, o mais ardente e o mais sincero defensor da raça negra que houve no seu tempo.

E conseguiu tudo isso com uma grande ferida aberta no coração, ferida que a sorte nunca lhe permitiu que sarasse. E que, desde aquele dia infeliz em que o pai o atirou para o convés do navio negreiro não teve mais notícias de sua mãe.

A vida inteira passou a pedir notícias dela e a procurá-la. E o destino cruel nunca mais consentiu que ele a visse. Às vezes, sonhava ouvindo-lhe a voz; delirava, outras vezes, vendo-a ao seu lado carinhosamente. Mas tudo sonho, sonho e nada mais.

(Do livro “Cazuza”, de Viriato Corrêa)

(1)   patacho – pequeno navio de vela, de dois mastros.


Luís Gonzaga Pinto da Gama foi um rábula, orador, jornalista e escritor brasileiro. Nascido de mãe negra livre e pai branco; foi, contudo, feito escravo aos 10, e permaneceu analfabeto até os 17 anos de idade. Nascimento: 21 de junho de 1830, Salvador, Bahia - Falecimento: 24 de agosto de 1882, São Paulo, São Paulo



4 comentários:

  1. NÃO É POSSÍVEL QUE ELE FOSSE ANALFABETO ATÉ OS 17 ANOS , POIS COMO VIMOS NA LEITURA DE SUA VIDA , SEU PAI LHE TINHA MUITA ESTIMA ATÉ OS 10 ANOS, TEMPO SUFICIENTE PARA TER APRENDIDO ALGO. E PARA TER AS HABILIDADES QUE TINHA NO VERNÁCULO SERIA IMPOSSÍVEL NESSE TÃO POUCO TEMPO.

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  2. NÃO ACREDITO QUE ELE TENHA SIDO VENDIDO E SIM ENTREGUE A PESSOAS QUE PUDESSEM CRIÁ-LO E DAR UMA EDUCAÇÃO ADEQUADA ATÉ QUE PUDESSE CAMINHAR SOZINHO. ALUNO DE DIREITO QUE CHEGOU NA CASA DE "SEUS SENHORES" OU PADRINHOS , CHEGOU PARA JUSTAMENTE FORTALECER ESSES ESTUDOS. DO TEMPO QUE SE DIZ QUE ELE FOI ALFABETIZADO ATÉ SUA ENTRADA NO MILITARISMO SERIA MUITO POUCO PARA TER A HABILIDADE QUE TINHA PARA DEPOIS SER AMANUENSE.

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  3. Amigo Marcelo, é só ler todas as biografias de Luiz Gama que estão na Internet, todas contam essa mesma versão, e Viriato Correa deve ter feito uma consulta histórica para colocar esse fato no seu livro.

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    1. Além disso, o escritor Viriato Correa foi seu contemporâneo e devia saber muito bem o que estava dizendo.

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