segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Canção do Boêmio

Castro Alves


Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua;
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vês?… Meu coração é triste,
Como um calouro quando leva ponto.

A passos largos eu percorro a sala,
Fumo um cigarro que filei na escola…
Tudo no quarto de Nini me fala,
Embalde fumo… tudo aqui me amola.

Diz-me o relógio, cinicando a um canto:
‒ Onde está ela que não veio ainda?
Diz-me a poltrona: por que tardas tanto?
Quero aquecer-te, rapariga linda.

Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo clareia uma canção ardente;
Tens um idílio ‒ em tua fronte bela…
Um ditirambo ‒ no teu seio quente…

Pego o compêndio… inspiração sublime
Pra adormecer… inquietações tamanhas…
Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação… de aranhas…

Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha?!
Vós, todos, todos, que dormis em casa,
Dizei se há dor que se compare à minha!…

Nini! o horror deste sofrer pungente
Dó teu sorriso neste mundo acalma…
Vem aquecer-me em teu olhar ardente…
Nini! Tu és o cache-nez dest’alma.

Deus do Boêmio!... São da mesma raça
As andorinhas e o meu anjo louro…
Fogem de mim se a primavera passa,
Se já nos campos não há flores de ouro…

E tu fugiste, pressentindo o inverno,
Mensal inverno do viver boêmio…
Sem te lembrar que por um riso terno
Mesmo eu tomara a primavera a prêmio…

No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali… Que minas!
Além, de um lado, o violão saudoso
Guardo no seio inspirações divinas…

Se tu viesses… de meus lábios tristes
Rompera o canto… Que esperança inglória!…
Ela esqueceu o que jurar-lhe vistes,
Ó Pauliceia, ó Ponte Grande, ó Glória!…

Batem!… Que vejo! Ei-la afinal comigo…
Foram-se as trevas… fabricou-se a luz…
Nini! pequei… dá-me exemplar castigo!
Sejam teus braços… do martírio a cruz!...







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