Paulo Mendes*
Mateando Lauren Bacco
A vasta noite do Sul chegou montada
num pingo zaino de crinas longas e frias. A madrugada se vestiu de negro, com
seu poncho escuro fazendo os cuscos ganirem nos oitões do rincão, enquanto um
ventito pavena balançava a copa dos ciprestes e assoprava uma milonga
temporona. Dentro do rancho, o velho campeiro teve um estremecimento no corpo
carcomido pelo tempo, se remexeu no catre e tentou levantar. Pelo menos queria
acender de novo o fogo, esquentar outra vez a cambona, cevar o mate e, por fim,
sorver lentamente o amargo para esquentar-lhe os ossos e a alma de missioneiro
e, quem sabe, voltar a recordar antigas manhãs ensolaradas de setembro.
Era disso que sentia falta. Onde
estaria a companheirada de compridas tropeadas, de dias e dias repontando gado
por corredores sem fim, sem nunca deixar uma rês na estrada? E os pingos?
Tivera uma dezena deles, um mais lindo que o outro, tostados, baios, picaços,
ruanos, lubunos, tordilhos oveiros e malacaras. Tinha encilhado tantos fletes.
Também as tiranas, chinocas ariscas que olhavam para ele com ares de quem é
dona. Tinham deixado muitos fios de cabelos trançados nas franjas do pala. Pois,
nesse enlevo de memória, o velho guasca fez um esforço e finalmente ganhou o
fogão, fez as labaredas dançarem crepitando sobre os tições e principiou o
chimarrão.
Ah, senhor inverno, mas que frio
desgranido, pensou o índio enquanto puxava um pelego por sobre os ombros
encolhidos por aquela aragem medonha que vinha da banda oriental. E sentou no
cepo parecendo que ainda eram os aperos, lindos arreios de prata e de argolas
grandes. Agarrou-se no caibro e a mão trêmula sentiu como se fosse o punho de
prata da adaga que outrora usou na cintura. Nos bolichos, olhavam para aquele
dragão, o relho rabo-de-tatu, o Trinta e Oito no coldre, e desistiam de
qualquer intenção nefasta. Arre, que diacho se a vida se esvaía do corpo. Não
tem mais carreiradas dos domingos, foram-se as festanças de marcação, agora já
não ouvia o tilintar das chilenas sobre o chão de mangueira. Havia chegado a
hora de tirar o lenço do pescoço e abanar uma derradeira despedida.
Quando tomou o primeiro gole,
pareceu-lhe que a própria água tiritava de frio. Tossiu, um arrepio subiu pelas
ilhargas magras, a cuia tingiu de verde a bombacha encardida e, tateando ao
léu, como um boi sangrado, o velho cuera morreu.
*Jornalista e mestre em Literatura Brasileira
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