segunda-feira, 4 de setembro de 2017

O último mate

Paulo Mendes*


Mateando Lauren Bacco

A vasta noite do Sul chegou montada num pingo zaino de crinas longas e frias. A madrugada se vestiu de negro, com seu poncho escuro fazendo os cuscos ganirem nos oitões do rincão, enquanto um ventito pavena balançava a copa dos ciprestes e assoprava uma milonga temporona. Dentro do rancho, o velho campeiro teve um estremecimento no corpo carcomido pelo tempo, se remexeu no catre e tentou levantar. Pelo menos queria acender de novo o fogo, esquentar outra vez a cambona, cevar o mate e, por fim, sorver lentamente o amargo para esquentar-lhe os ossos e a alma de missioneiro e, quem sabe, voltar a recordar antigas manhãs ensolaradas de setembro.

Era disso que sentia falta. Onde estaria a companheirada de compridas tropeadas, de dias e dias repontando gado por corredores sem fim, sem nunca deixar uma rês na estrada? E os pingos? Tivera uma dezena deles, um mais lindo que o outro, tostados, baios, picaços, ruanos, lubunos, tordilhos oveiros e malacaras. Tinha encilhado tantos fletes. Também as tiranas, chinocas ariscas que olhavam para ele com ares de quem é dona. Tinham deixado muitos fios de cabelos trançados nas franjas do pala. Pois, nesse enlevo de memória, o velho guasca fez um esforço e finalmente ganhou o fogão, fez as labaredas dançarem crepitando sobre os tições e principiou o chimarrão.

Ah, senhor inverno, mas que frio desgranido, pensou o índio enquanto puxava um pelego por sobre os ombros encolhidos por aquela aragem medonha que vinha da banda oriental. E sentou no cepo parecendo que ainda eram os aperos, lindos arreios de prata e de argolas grandes. Agarrou-se no caibro e a mão trêmula sentiu como se fosse o punho de prata da adaga que outrora usou na cintura. Nos bolichos, olhavam para aquele dragão, o relho rabo-de-tatu, o Trinta e Oito no coldre, e desistiam de qualquer intenção nefasta. Arre, que diacho se a vida se esvaía do corpo. Não tem mais carreiradas dos domingos, foram-se as festanças de marcação, agora já não ouvia o tilintar das chilenas sobre o chão de mangueira. Havia chegado a hora de tirar o lenço do pescoço e abanar uma derradeira despedida.

Quando tomou o primeiro gole, pareceu-lhe que a própria água tiritava de frio. Tossiu, um arrepio subiu pelas ilhargas magras, a cuia tingiu de verde a bombacha encardida e, tateando ao léu, como um boi sangrado, o velho cuera morreu.
  

*Jornalista e mestre em Literatura Brasileira


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