(Na foto acima, Fernanda Montenegro, como Bibiana ,
e Thiago Lacerda com Capitão Rodrigo.)
Sozinha no seu quarto, sentada na sua
cadeira de balanço, e enrolada no seu xale, a velha Bibiana espera... O quarto
está escuro mas para ela nestes últimos anos, sempre é noite, pois a catarata
já lhe tomou conta dum olho e agora está começando a velar o outro. Ela
mal-e-mal enxerga o vulto das pessoas, mas ouve tudo, sabe de tudo, conhece as
gentes da casa pela voz, pelo andar e até pelo cheiro. Quando ouviu o primeiro
tiroteio, ficou nesta mesma cadeira, esperando e escutando. Quando as balas partiam
as vidraças ou se cravavam nas paredes, ela tinha a impressão de estar vendo –
não! – de estar ouvindo uma pessoa de sua família ser fuzilada pelos inimigos.
Medo não sentiu, isso não. Teve dó. E ódio. Estragarem o sobrado desse jeito! Mas
a guerra para ela não é novidade. Tudo isso já aconteceu antes, muitas, muitas
vezes. Viu guerras e revoluções sem conta, e sempre ficou esperando. Primeiro,
quando menina, esperou o pai; depois o marido. Criou o filho e um dia o filho
também foi para a guerra. Viu o neto crescer, e agora Licurgo está também na
guerra. Houve um tempo em que ela nem mais tirava o luto do corpo. Era morte de
parente em cima de morte de parente, guerra sobre guerra, revolução sobre
revolução. Como o tempo custa a passar quando a gente espera! Principalmente
quando venta. Parece que o vento maneia o tempo.
Dona Bibiana se balouça na sua
cadeira. Há momentos em que não se lembra de nada. Na sua cabeça há apenas uma
cerração. Ouve ruídos, vozes, engole os mingaus que lhe dão, deixa-se levar
para a cama – mas, ás vezes, não sabe quem é quem é nem onde está. Noutros
momentos, porém, volta-lhe tudo. E na noite escura da catarata ela vê faces,
vultos, cenas. De vez em quando lá longe ouve uma voz: “Bibiaaana!”. É o Capitão
Rodrigo que entra como tufão, arrastando as esporas no assoalho. A pele de seu
homem tem um cheiro de sol; suas barbas parecem macega, mas macega castanha.
Seus olhos... Mas como eram mesmo os olhos do capitão? De que cor? Pretos?
Cinzentos? Azuis? Tinha uma voz forte, como a do Curgo – disso a velha Bibiana
se lembra.
Ela tem nos dedos murchos um rosário.
Esqueceu quase todas as orações. Há uma para dia de tempestade. Outra para
tempo de peste. Agora ela precisa rezar pelo bom sucesso de Alice. Para que
botar filhos no mundo, se mais tarde ou mais cedo a guerra leva as
criaturinhas?
A velha Bibiana gosta do barulho da
cadeira nas tábuas do assoalho. É como uma voz, uma companhia. Lembra-lhe
outros tempos, outras largas esperas. Estas batidas surdas e o uivo do vento, e
o matraquear das vidraças, e o tempo passando...
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(Do livro “O Tempo e
o Vento”,
de Érico Veríssimo, 1905-1975)
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