Ivan Ângelo
Um pai matou
o filho a tiros em Cabo
Frio.
Na tragédia grega, o filicídio é um
crime tão terrível que não é cometido por escolha humana, ocorre em
consequência das tramas dos deuses, que traçam o destino dos homens. O mesmo
acontece com o parricídio, o matricídio e o fratricídio. E não é por serem
instrumento do destino que aqueles que matam sofrem menos. Édipo vazou seus
dois olhos quando soube que o homem que havia matado era seu pai e que dormira
com a própria mãe, mas nem assim aplacou sua dor e seu sentimento de culpa.
Qual foi a trama do destino que
empurrou aquele pai para a tragédia em Cabo Frio ? Talvez a ponta do novelo tenha sido
puxada quando o garoto Leandro começou a jogar polo aquático na Tijuca, Rio de
Janeiro. Era bom no esporte, destacou-se. Campeão, estudava e disputava. O
destino deu mais corda: o garoto começou a puxar um fuminho, coisa à toa. Mais
corda: o garoto foi convocado para a seleção brasileira, com chances de ir para
a Olimpíada de Barcelona. Mais corda: ele foi chamado para o serviço militar,
acabou-se o sonho olímpico. Saiu do serviço militar viciado em cocaína – e
nisso o novelo da tragédia começou a enrolar a família, o pai, a irmã, a mãe.
Tiveram de fugir da Tijuca e da dívida do viciado com traficantes, perigo de
morte. Venderam tudo pelo preço do desespero e foram tocar um posto de gasolina
em Barra de São João, no Estado do Rio. Novo traficante, nova dívida impossível
de pagar, nova fuga, para Cabo Frio, nova perda de bens da família. Em Cabo Frio , o pai abriu
um novo negócio, um bar, e o filho fez outra dívida com traficantes. Então o
pai disse chega, com um bastão de beisebol na mão. O filho avançou. Outro lance
do destino: havia um revólver embaixo do balcão, para o pai defender-se contra
assaltos. Atira senão te mato, disse o filho, e o pai atirou quatro vezes. Está
um trapo: “Minha sentença já foi dada, é o desespero da minha família.”
Reparem como tudo ser encadeou para este
final de tragédia grega, em que os homens são peças que os deuses movimentam,
peças pensantes e agentes, por isso trágicas, sofredoras.
Este caso lembrou-me outro, parecido e
mais doloroso, e que me impressionou muito porque conheci o filho. O rapaz
tinha um rosto lindo, delicado, de pele lisa, quase imberbe, olhos tímidos,
boca pequena e rosada; o busto era delicado, fino, frágil; da cintura para
baixo era aleijado de nascença, murcho, pernas sem musculatura, vergadas,
moles, nas quais se equilibrava com o auxílio de muletas. Quando estava
cansado, usava cadeira de rodas. Queria ser autor teatral, mas não conseguira
domesticar sua revolta, ou organizá-la em uma forma de arte. O pai era
funcionário público aposentado, viúvo, a quem o filho culpava pelo aleijão. O
menino de pernas gelatinosas viciou-se em álcool e maconha. “Não reclama não!
Não reclama não! Você que me fez assim!” – gritava ele bêbado para o pai.
Perdido nessa revolta, tornou-se homossexual. Levava homens para casa, várias
vezes fez o pai pagar quando o parceiro era garoto de programa. Depois veio a
cocaína. O dinheiro do pai transformava-se em pó branco e sumia pelas narinas
do filho. Ele batia o pó na frente do pai, olhando-o em desafio, mostrava as
pernas, dizia “olha essas pernas, olha o que você fez”, e cheirava. Uma noite o
pai sufocou-o até a morte com um travesseiro e matou-se com um tiro no ouvido.
A esses dois casos acrescento outro, para
concluir. Éramos meninos, tínhamos um cachorro doente de raiva, preso no
quintal da casa. De madrugada, quando todos dormiam, ouvi meu pai sair e, em
seguida, barulhos de pauladas, ganidos, silêncio, passos, um tempo longo,
passos novamente, água correndo no tanque, depois ele entrou na casa e ouvi seu
choro na cozinha, durante algum tempo, até que adormeci.
Se matar um bicho de casa, raivoso, é
capaz de destroçar assim o coração de um homem, que dirá matar um filho?
Malditos
traficantes.
*****
A notícia
10/04/2016
Ele matou com três
tiros o filho caçula, Leandro,
então com 23 anos, após uma briga.
então com 23 anos, após uma briga.
Leonardo, que era
usuário de drogas, foi morto pelo pai há 20 anos.
Já se passaram quase 20 anos desde
aquela noite do dia 24 de fevereiro de 1996. As lembranças, no entanto, não
saem da cabeça de Eloy Salino da Costa, hoje com 74 anos. Ele matou com três
tiros o filho caçula, Leandro, então com 23 anos, após uma briga. O rapaz era
usuário de drogas e, transtornado, partiu para cima do pai com um taco de
beisebol. Eloy foi absolvido pela Justiça, alegando legítima defesa.
A sua história foi destaque
na capa da primeira edição do EXTRA, publicada em 05 de abril de 1998.
- Penso nisso todos os dias
e choro lembrando dele. Meu filho era meu xodó, mas quando estava sob efeito
das drogas, virava um demônio. Ele teria 42 anos hoje. Não me perdoo pelo que
aconteceu -
conta o aposentado.
Eloy ainda mora em Arraial do Cabo,
no mesmo local de 18 anos atrás. O seu bar, onde o crime ocorreu, que ficava em Cabo Frio , foi vendido
meses depois. O aposentado conta que perdeu seu patrimônio depois do crime,
principalmente por causa dos gastos com advogados. Ele chegou a ficar preso por
45 dias.
- Esse assunto (a morte do
filho) não é um assunto bem resolvido na minha família. Sinto que nem todos
compreenderam o que aconteceu - relata.
Desde outubro, Eloy trabalha como vigia num hotel em Arraial do Cabo. Ele diz que assim mantém a cabeça ocupada.
- Foi uma bênção. Preciso
me distrair. Tenho tentado me reerguer durante todos esses anos, mas nunca
consegui -
emociona-se.
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