sábado, 14 de outubro de 2017

Corações destroçados


Ivan Ângelo


Um pai matou o filho a tiros em Cabo Frio.

Na tragédia grega, o filicídio é um crime tão terrível que não é cometido por escolha humana, ocorre em consequência das tramas dos deuses, que traçam o destino dos homens. O mesmo acontece com o parricídio, o matricídio e o fratricídio. E não é por serem instrumento do destino que aqueles que matam sofrem menos. Édipo vazou seus dois olhos quando soube que o homem que havia matado era seu pai e que dormira com a própria mãe, mas nem assim aplacou sua dor e seu sentimento de culpa.

Qual foi a trama do destino que empurrou aquele pai para a tragédia em Cabo Frio? Talvez a ponta do novelo tenha sido puxada quando o garoto Leandro começou a jogar polo aquático na Tijuca, Rio de Janeiro. Era bom no esporte, destacou-se. Campeão, estudava e disputava. O destino deu mais corda: o garoto começou a puxar um fuminho, coisa à toa. Mais corda: o garoto foi convocado para a seleção brasileira, com chances de ir para a Olimpíada de Barcelona. Mais corda: ele foi chamado para o serviço militar, acabou-se o sonho olímpico. Saiu do serviço militar viciado em cocaína – e nisso o novelo da tragédia começou a enrolar a família, o pai, a irmã, a mãe. Tiveram de fugir da Tijuca e da dívida do viciado com traficantes, perigo de morte. Venderam tudo pelo preço do desespero e foram tocar um posto de gasolina em Barra de São João, no Estado do Rio. Novo traficante, nova dívida impossível de pagar, nova fuga, para Cabo Frio, nova perda de bens da família. Em Cabo Frio, o pai abriu um novo negócio, um bar, e o filho fez outra dívida com traficantes. Então o pai disse chega, com um bastão de beisebol na mão. O filho avançou. Outro lance do destino: havia um revólver embaixo do balcão, para o pai defender-se contra assaltos. Atira senão te mato, disse o filho, e o pai atirou quatro vezes. Está um trapo: “Minha sentença já foi dada, é o desespero da minha família.”

Reparem como tudo ser encadeou para este final de tragédia grega, em que os homens são peças que os deuses movimentam, peças pensantes e agentes, por isso trágicas, sofredoras.

Este caso lembrou-me outro, parecido e mais doloroso, e que me impressionou muito porque conheci o filho. O rapaz tinha um rosto lindo, delicado, de pele lisa, quase imberbe, olhos tímidos, boca pequena e rosada; o busto era delicado, fino, frágil; da cintura para baixo era aleijado de nascença, murcho, pernas sem musculatura, vergadas, moles, nas quais se equilibrava com o auxílio de muletas. Quando estava cansado, usava cadeira de rodas. Queria ser autor teatral, mas não conseguira domesticar sua revolta, ou organizá-la em uma forma de arte. O pai era funcionário público aposentado, viúvo, a quem o filho culpava pelo aleijão. O menino de pernas gelatinosas viciou-se em álcool e maconha. “Não reclama não! Não reclama não! Você que me fez assim!” – gritava ele bêbado para o pai. Perdido nessa revolta, tornou-se homossexual. Levava homens para casa, várias vezes fez o pai pagar quando o parceiro era garoto de programa. Depois veio a cocaína. O dinheiro do pai transformava-se em pó branco e sumia pelas narinas do filho. Ele batia o pó na frente do pai, olhando-o em desafio, mostrava as pernas, dizia “olha essas pernas, olha o que você fez”, e cheirava. Uma noite o pai sufocou-o até a morte com um travesseiro e matou-se com um tiro no ouvido.

A esses dois casos acrescento outro, para concluir. Éramos meninos, tínhamos um cachorro doente de raiva, preso no quintal da casa. De madrugada, quando todos dormiam, ouvi meu pai sair e, em seguida, barulhos de pauladas, ganidos, silêncio, passos, um tempo longo, passos novamente, água correndo no tanque, depois ele entrou na casa e ouvi seu choro na cozinha, durante algum tempo, até que adormeci.

Se matar um bicho de casa, raivoso, é capaz de destroçar assim o coração de um homem, que dirá matar um filho?

Malditos traficantes.

*****

A notícia

10/04/2016

Ele matou com três tiros o filho caçula, Leandro,
então com 23 anos, após uma briga.


Leonardo, que era usuário de drogas, foi morto pelo pai há 20 anos.

Já se passaram quase 20 anos desde aquela noite do dia 24 de fevereiro de 1996. As lembranças, no entanto, não saem da cabeça de Eloy Salino da Costa, hoje com 74 anos. Ele matou com três tiros o filho caçula, Leandro, então com 23 anos, após uma briga. O rapaz era usuário de drogas e, transtornado, partiu para cima do pai com um taco de beisebol. Eloy foi absolvido pela Justiça, alegando legítima defesa.

A sua história foi destaque na capa da primeira edição do EXTRA, publicada em 05 de abril de 1998.

- Penso nisso todos os dias e choro lembrando dele. Meu filho era meu xodó, mas quando estava sob efeito das drogas, virava um demônio. Ele teria 42 anos hoje. Não me perdoo pelo que aconteceu - conta o aposentado.

Eloy ainda mora em Arraial do Cabo, no mesmo local de 18 anos atrás. O seu bar, onde o crime ocorreu, que ficava em Cabo Frio, foi vendido meses depois. O aposentado conta que perdeu seu patrimônio depois do crime, principalmente por causa dos gastos com advogados. Ele chegou a ficar preso por 45 dias.

- Esse assunto (a morte do filho) não é um assunto bem resolvido na minha família. Sinto que nem todos compreenderam o que aconteceu - relata.

Desde outubro, Eloy trabalha como vigia num hotel em Arraial do Cabo. Ele diz que assim mantém a cabeça ocupada.

- Foi uma bênção. Preciso me distrair. Tenho tentado me reerguer durante todos esses anos, mas nunca consegui - emociona-se.



Nenhum comentário:

Postar um comentário