(Texto de Luis
Fernando Veríssimo)
Um número recente da “Veja”
trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) “incomodações"
na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou
especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.
É uma figura que sempre me intrigou.
A foto da “Veja” mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela
quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria
contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta,
dois ou três dos seus companheiros, também em plena parafernália de guerra,
esperam tensamente para entrar no tiroteio. Há fumaça por todos os lados, um
clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano,
está o Popular. De pé, olhando com algum interesse ao que se passa, com as mãos
nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta
parou para ver a guerra.
Sempre pensei que o Popular fosse uma
figura exclusivamente brasileira. Nas nossas incomodações políticas, no tempo
em que ainda havia política no Brasil, o Popular não perdia uma. Os jornais
mostravam tanques na Cinelândia protegidos por soldados de baioneta calada e lá
estava o Popular, com um embrulho embaixo do braço, examinando as correias de
um dos tanques. Pancadaria na Avenida? Corria polícia, corria manifestante,
corria todo mundo, menos o Popular. O popular assistia. Chequei a imaginar,
certa vez, uma série de cartuns em que o Popular apareceria assistindo ao
Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao Grito da Independência, à
Proclamação da República... Sempre com seu embrulho embaixo do braço. E de
camisa esporte clara para fora das calças (o Popular irlandês veste terno e
sobretudo contra o frio. o Popular tropical e muito mais Popular).
Não se deve confundir o Popular
com o Transeunte, também conhecido como
o Passante. O Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular
nunca. O Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica
assistindo à sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os
acontecimentos. Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular
fica com as mãos no bolso e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos
batedores do que à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar
momentaneamente com uma frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é o
que fica olhando para o Transeunte.
O Popular não tem opinião sobre as
coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir “a opinião de um popular”
na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o entrevistado, é o sujeito que
está atrás do entrevistado, olhando para a câmara.
O Popular não merece nem os méritos
nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é “socorrido por
populares”, outro, menos feliz, que é linchado por populares... Engano. Onde há
um bando de populares não há o Popular. O Popular é a antimultidão. Sua única
virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo inconsciente diante da
História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o Poder e os grandes
lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade pelo detalhe
supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas revoluções, o que
atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no chão, o mecanismo
de um tanque, as lentes de uma câmara.
O Popular é uma figura tipicamente
urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a margem dos
acontecimentos. E – este é o seu maior mistério, a chave da sua existência –
ninguém jamais conseguiu descobrir o que o popular leva naquele embrulho. E tem
mais. O dia que pegarem um Popular para desvendarem o mistério, será inútil.
Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará atrás do preso,
assistindo tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário