sexta-feira, 10 de novembro de 2017

A Lapa de ontem


Leia texto de Millôr Fernandes que está no livro
 “Antologia da Lapa”


Botequim da Lapa por Lan

Entre os 13 e os 20 anos vivi no centro do mundo. No Rio, capital do Brasil, que ia do belo edifício art noveau do Liceu de Artes e Ofícios (por trás ficava O Globo, um jornalzinho), onde eu estudava, ao Largo da Carioca, junto da Galeria Cruzeiro dos enormes bares Nacional e da Brahma (no enorme Hotel Avenida, dentro do qual passavam bondes) e dos cafés Nice e Belas Artes, centro da boemia musical, profissional, amadora e roubadora. Em frente, o teatro Fênix, onde, certa noite, um cantor argentino, sob luzes azuladas, me deixou encantado: Juan Daniel, pai de Daniel Filho. Em frente também, o Hotel Central, onde “paravam” políticos gaúchos, o mais famoso deles o machão-sem-medo Flores da Cunha que, com ou sem motivo, puxava seu revólver. Um pouco adiante, lá estavam o Municipal, a Câmara e o Senado, e o Palácio Monroe, que a grosseria-ciúme do “Presidente” Geisel demoliu. Por quê? Em volta, em toda parte, cinemas, cinemas, cinemas. A Cinelândia. Aí, rapazinho, convivi com alguns dos que se tornariam, ou já eram, os maiores nomes da música popular brasileira - entre eles Lamartine, Orestes e Nássara, também caricaturista genial, meu amigo até morrer. Ali eu andava, vendo as confeitarias luxuosas (ao fundo cresciam os bancos, que as substituiriam e destruiriam), os cinemas chiquérrimos (entrar sem gravata, nem pensar!), o Passeio Público - e a Lapa!

Existiu mesmo esse antro de malandros, cafiolas, criminosos, barras pesadas de toda espécie? Sei não. Subitamente, há bem pouco tempo, tive minhas dúvidas. Dos 16 aos 20 anos morei na Rua das Marrecas. A Rua das Marrecas era uma rua de bem. Na esquina ficava o esplendor do cinema Metro com seu ar refrigerado gelando até os transeuntes. Nessa rua morava o já famoso e refinado desenhista Alceu Pena (durante algum tempo ganhei uma grana enchendo os fundos de seus quadrinhos e fazendo os versos de suas páginas), autor das famosíssimas Garotas do Alceu. Moravam também o desenhista e pintor Augusto Rodrigues e, passando pela rua uma vez ou outra, já com algum sucesso e já invejosamente chamado de analfabeto pelos queridos colegas, o perigoso comunista (na época até que era um pouco) Jorge Amado. Comigo, no mesmo prédio, pequeno, de três andares, durante dois anos morou Péricles Maranhão, autor do Amigo da Onça.

A superpopulação ainda estava sendo fabricada pelos miseráveis do interior e das favelas, sem nenhum gozo na vida a não ser o propriamente dito. A Rua das Marrecas ficava a uma quadra da Lapa e a uma quadra da Cinelândia. Exatamente no meio das duas. Nunca senti a diferença entre um local e outro. Num eu ficava vendo mulheres fascinantes - andavam, ainda, lindas, hieráticas, de chapéu. Na Cinelândia, eu virava as noites batendo papo com Orestes e Nássara. Na Lapa próspera eu ia com gente da minha idade, jogar sinuca no Café Indígena, bem na entrada do bairro e olhar um ou outro cabaré chinfrim, já no interior do bairro - feito de uma dezena de ruas mais ou menos estreitas, depois demolidas. Ou arriscar uma ida à Conde Laje, onde havia um puteiro (rendez vous) de “luxo” (para vocês verem o que era a Lapa basta dizer que aqui as moças custavam 20 mil reis, na Zona custavam 5).

Na Lapa, parte de cima, no outeiro, morou o pacato Manoel Bandeira. Curiosamente, a Lapa terminava no meio da Rua da Lapa. A partir dali morava gente de família, gente fina, o escritor Pedro Nava morou ali perto durante quarenta anos. Andei e reandei por aquelas ruas. Durante o dia, no quiosque do ponto de bondes, o pessoal pobre tomava toneladas de uma beberagem absolutamente idiota, espécie de sal de frutas, o Hidrolitol. E a noite terminava - pasmem! - bem no centro da Lapa, numa leiteria, a Bol (havia, na cidade, 251 leiterias e cafés-leiteria; pesquisei), que servia uma canja gorda, deliciosa - pelo menos na memória. Nunca vi, na Lapa dos cabarés, dos bares, dos clubes carnavalescos, dos bambambãs e dos turunas, um assassinato, um assalto, uma briga - olhem, nem mesmo uma bofetada. Pois é, foi ali (ou não foi ali?), no Capela (ou não foi no Capela?), que Madame Satã (ou não foi Madame Satã?) matou (ou não matou?), com um soco só! (ou uma facada?), o grande GTP, o sambista Geraldo Pereira (“O escurinho era um escuro direitinho/ Agora está com a mania de brigão”)?

Tudo é lenda.

Nos anos 1960, escrevi um musical - ensaiado no João Caetano, mas não representado - sobre a Lapa. Nele, também atuado pela lenda, inventei uma cena de balé em que Madame Satã enfrenta toda uma patrulha de Chapeuzinhos Vermelhos (a famigerada Polícia Especial, de Getúlio Vargas, outra lenda). A patrulha só consegue dominar Satã quando vai passando um carregador português com seu carro de mudanças - o popular burro-sem-rabo. Os policiais jogam Madame Satã sobre o carrinho e, com Satã solidamente amarrado, deixam o palco. Boa cena - prum musical. Nos anos 1970, no Pasquim, entrevistamos Madame Satã, a essa altura já íntimo (no bom sentido) do Jaguar, o maior mitólogo brasileiro da segunda metade do século XX. Contei a Satã (está registrado) a cena teatral. Satã, um fantasioso da pesada, imediatamente detalhou, para a patota fascinada, o seu feito extraordinário. E as várias vezes em que aquilo tinha acontecido.

Observações:


Realmente, Madame Satã enfrentou várias vezes a Polícia Especial (Choque) do Rio de Janeiro, onde atuava Mário Vianna, que depois viria ser árbitro de futebol. Os dois brigaram na Leiteria Bol. Sim, ele brigou com o sambista Geraldo Pereira, e, em consequência dessa luta, Geraldo viria a falecer em um hospital de hemorragia interna. 


Leiteria Bol, local da famosa briga:
Mário Vianna X Madame Satã
(Deu empate)


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