Antes, ouvia com nitidez os sons
repetidos da vida.
Agora, nem a campanhia
estridentes do celular consegue escutar.
Antes, beijava com ardor e volúpia.
Agora, só respeitosos beijinhos na bochecha.
Antes, era tido como um bom atleta.
Agora, é driblado com facilidade
pelo veloz neto de sete anos.
Antes, guiava com segurança e destreza.
Agora, é só carona.
Antes, usava óculos para barrar
esteticamente o brilho do sol.
Agora, enfrenta a catarata.
Antes, reuniam-separa ouvir seus
planos e propostas.
Agora, repete para poucos, as
poucas histórias que sobraram na memória.
Antes, pela aparência, diziam
que, no futuro, seria um viúvo.
Agora, aposta-se mais na viúva.
Antes, ia ao médico só para
checapes anuais, que finalizavam com OKs quase monótonos.
Agora, é escravo dos exames laboratoriais e foge do tubo
fúnebre da ressonância magnética.
Antes, o jornal era leitura
obrigatória, de cabo a rabo.
Agora, dá-se por satisfeito
passando os olhos, com interesse e temor, no obituário.
Antes, usava galochas.
Agora, não se adapta às havaianas.
Antes, sua intimidade era respeitada.
Agora, na mão das jovens enfermeiras, de fisioterapeutas
perdeu sua privacidade
Antes, para ter privilégios dos
idosos exigiam-lhe documentos comprobatórios.
Agora, os “documentos” são as
rugas de um trôpego.
Antes, não precisava testar sua
privilegiada memória.
Agora, às vezes até esquece que o esquecimento é seu
companheiro.
Antes, tivera filhos obedientes.
Agora, submete-se às imposições
anárquicas dos netos.
Antes, a cerveja gelada no verão
e o vinho tinto no inverno não respeitavam lei seca.
Agora, só água para tomar as
coloridas pílulas para diversas doenças.
Antes, tremia quando das grandes emoções.
Agora, a culpa é do Parkinson.
Antes, o coletivo era família.
Agora, vigora o individualismo competitivo.
Antes, bonita era a alvorada.
Agora, acompanha, sentimental, ao lado da companheira
amorosa, o declínio do pôr-do-sol.
(Carlos Alberto
Chiarelli)
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