Fernando Sabino
Estou numa esquina de Copacabana, são
duas horas da madrugada. Espero uma condução que me leve para casa. À porta de
um “dancing”, homens conversam, mulheres entram e saem, o porteiro espia
sonolento. Outras se esgueiram pela calçada, fazendo a chamada vida fácil.
De súbito a paisagem se perturba.
Corre um frêmito no ar, há pânico no rosto das mulheres que fogem. Que
aconteceu? De um momento para outro, não se vê mais uma saia pelas ruas − e
mesmo os homens se recolheram discretamente à sombra dos edifícios.
− Que
aconteceu? − Pergunto a alguém que passa apressado.
É a radiopatrulha: vejo o carro negro
surgir da esquina como um deus blindado e vir rodando devagar, enquanto os
olhos terríveis da Polícia espreitam aqui e ali. Não se sabe como, sua aparição
foi antecedida de um aviso que veio rolando pelas ruas trazido pelo vento,
espalhando o medo e possibilitando a fuga.
Eis, porém, que surgem da esquina duas
mulheres, desavisadas e tranquilas. Uma é mulata e alta, outra é baixa e tão
preta, que só o vestido se destaca dentro da noite − ambas pobres e feias. Veem
o inimigo, perdem a cabeça e saem em disparada, cada uma para o seu lado. O
carro da polícia acelera, ao encalço da mulata: em dois minutos ela é
alcançada...
A outra, trêmula de medo, se encolhe
a meu lado como um animal, tentando ocultar-se. O carro faz a volta e vem se
aproximando.
− Pelo amor
de Deus, moço, diga que está comigo.
Já não há tempo de fugir. A pretinha
me olha assustada, pedindo licença para tomar-me o braço, e, assim, protegida,
enfrenta o olhar dos policiais. Tomado de surpresa, fico imóvel, e somos como
um feliz, ainda que insólito casal de namorados. Compenetro-me, forças secretas
dentro de mim endireitam-me o corpo para enfrentar a situação. Ouço a voz de
Quixote sussurrar-me que agora, ou vou preso com ela, ou ninguém vai, na
verdade, neste instante de heroísmo, unido a um ser humano pelo braço, sinto-me
capaz de enfrentar até o Juízo Final, quanto mais a Delegacia de Costumes.
Passado o perigo, a preta retira humildemente
o braço do meu, faz um trejeito, agradecendo, e desaparece na escuridão. Eu é
que agradeço, minha senhora − é o que pensa aqui o fidalgo. Tomo alegremente o
meu lotação e vou para casa com a alma leve, pensando na existência daquelas
coisas, como diria o poeta, pelas quais os homens morrem.
*****
(Do livro Quadrante I)
Atitudes assim só tomam os homens diferenciados.
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