O mais terrível não era a menina me
chamando de “tio” e pedindo um trocado, ela de pé no chão, no asfalto, e eu no
meu carro de bacana. O mais terrível não era eu escolhendo a cara e a voz para
dizer que não tinha trocado, desculpe, como se a vergonha tivesse um protocolo
que a absolvesse. O mais terrível não foi nem a naturalidade com que ela cuspiu
na minha cara. O mais terrível foi que ela era tão pequena que a cusparada não
me atingiu.
Somos boas pessoas, bons cidadãos e
bons pais, mas somos tios relapsos. Nossas sobrinhas e nossos sobrinhos enchem
as ruas das nossas cidades, cercam nossos carros, invadem nossas vidas e
insistem que são da nossa família, e não temos nada para lhes dar ou dizer,
além de esmola ou “desculpe”. Na família brasileira “tios” e sobrinhos têm um
diálogo de ameaça e medo, revolta e remorso, e poucas palavras. Nenhum consolo
possível, nenhuma esperança, nenhuma explicação. O que dizer a uma sobrinha
cuja cabeça mal chega à janela do carro e tenta cuspir na cara do tio? Feio.
Falta de educação. Papai do céu castiga. Paciência, minha filha, este é apenas
um ciclo econômico e a nossa geração foi a escolhida para este vexame, você aí
desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te dizer, agora afasta que
abriu o sinal. Não pergunte ao titio quem fez a escolha, é tudo muito
complicado e, mesmo, você não entenderia a teoria. Vai cheirar cola, para
passar. Vai morrer, para esquecer. Ou vai crescer, para me matar na próxima
esquina.
A História, dizem, terminou, e os mocinhos
ganharam. Os realistas, os antiutópicos, os racionais. Ficou provado que a
solidariedade é antinatural e que cada um deve cuidar dos apetites dos seus. O
seja: ninguém é “tio” de ninguém. A família humana é um mito, o sofrimento
alheio é um estorvo e se a miséria a tua volta te incomoda, compra uma antena
parabólica. Ninguém é insensível, dizem os mocinhos, mas a compaixão fracassou.
Essa é a lição destes dias, a compaixão não funciona. Todos esses anos de
convivência com a dor dos outros, que deviam ter nos educado para a compaixão,
nos educaram para autodefesa, para cuspir primeiro. Os bons sentimentos
faliram, dizem os mocinhos. Confiemos o futuro ao mercado, que não tem sentimentos,
que tritura gerações entre seus dedos invisíveis, pra que se envolver? Afasta
do carro que abriu o sinal.
Mas mais terrível do que tudo é eu
ficar aqui, escolhendo frases para encher papel, até cuidando o estilo, já que
é domingo. Como se fizesse alguma diferença. Como se isso fosse nos salvar, o
tio da sua impotência e cumplicidade e sobrinha anônima do seu destino.
Desculpe.
(Paulo Santa, Zero
Hora, 1992)
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