quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A fuga da Ilha do Presídio

A mais insólita de todas as fugas


Novembro de 1956

É uma noite clara, fria e ventosa. Os detentos da Ilha do Presídio* já se recolheram às suas celas, com exceção de dois. Júlio de Castilhos Pettinelli e Ettore Capri permanecem na cozinha, fazendo a limpeza das dezenas de pratos, panelas e talheres utilizados durante a janta. Prolongam a tarefa muito além do tempo necessário, até que tudo se aquiete. Quando só resta o ruído da vegetação sacudida pelo vento e das ondas do Guaíba de encontro ao pequeno atracadouro, Júlio olha para Ettore.

− É agora!

Recolhem os dois maiores panelões e algumas colheres de pau e rumam para a margem oposta ao atracadouro, esgueirando-se entre os pedregulhos, arbustos, cactos e corticeiras. Alcançam o ponto desejado, ao lado de uma pedra gigantesca que os protege da visão das guaritas. Ali, encontraram dois pedaços de tábua, uma folha de cortiça e cordas, que haviam escondido antecipadamente.

A operação é complicada. Eles devem amarrar as tábuas revestidas de cortiça nas alças dos panelões, construindo assim uma pequena barcaça na qual pretendem fugir da ilha. Os nós devem ser apertados ao extremo, caso contrário, os panelões se soltarão, o que significará um fim trágico para sua aventura. A construção do “barco” dura quase uma hora.

− Tem certeza de que funciona? – pergunta Ettore.
− Na teoria, é pra funcionar. Vamos ver na prática.

As condições são desfavoráveis. A orientação do vento os obrigará a tomar o rumo do município de Guaíba e não da Capital, como pretendiam.

Antes de colocarem a geringonça na água, Ettore fraqueja:

− Acho que vou desistir.
− Agora? – exclama Júlio.
− Está muito ventoso. Se essa coisa desmanchar, estou morto. Não sei nadar.
− Tu é que sabes – diz Júlio.

Quando vê Júlio se afastar da margem a bordo da improvisada embarcação, Ettore grita:

− Tá bem, tá bem. Eu vou junto.

As luzes dos holofotes das guaritas dançam sobre as ondulações do Guaíba, enquanto, lentamente, o bote improvisado se afasta da ilha. Com alguma dificuldade, Ettore se mantém equilibrado sobre a tábua, enquanto Júlio procura assegurar que os nós que a prendem aos panelões não se desmanchem com o fustigar das águas.

Percebem, então, que o vento não os levará para a margem de Guaíba e sim os empurra para o Sul, na direção da Lagoa dos Patos. Serão horas de viagem a esmo, sem nenhuma condição de atingirem a margem. Júlio sabe que o bote logo irá se desmanchar diante da fúria dos ventos e das águas.

Ettore fatalmente sucumbirá e ele, mesmo sendo um bom nadador, não terá forças e fôlego suficiente para alcançar a terra segura. Olha para trás e consegue, na claridade da noite, vislumbrar a ilha e seus holofotes, cada vez mais longe. Começa a sentir um mal-estar. O plano de fuga no qual estão empenhados é uma insanidade que irá cobrar de ambos um preço extremo: suas vidas.

A embarcação ingressa em uma área aberta do Guaíba, na qual o vento vem direto da foz de Itapuã, sem as barreiras dos morros situados às margens, erguendo ondas de mais de dois metros de altura. Açoitados pela ventania e pela água que espirra do contato com o barco, Júlio e Ettore buscam se manter em um equilíbrio precário.

Sua tentativa é redirecionar o barco para as margens, mas o vento se mostra impiedoso. Júlio atira-se na água e tenta nadar com um dos braços e puxar a embarcação com o outro. Ettore se mantém agachado sobre as tábuas e tenta remar com as colheres de pau.

Seus uniformes gastos começam a desfiar, fustigados pelo vigor das águas. Já perderam a noção do tempo que estão ali à mercê do vento e das ondas. Ettore permanece deitado sobre a base da madeira, exausto de tanto remar. Júlio boia agarrado a uma das alças do panelão. O frio enrijece seus braços e anestesia suas pernas.

− Dessa não escapamos – ele diz a Ettore e percebe que o parceiro perdeu os sentidos.

O vento ameniza. Por trás dos morros de Porto Alegre, Júlio enxerga um suave clarão que anuncia o amanhecer. Volta-se para o outro lado e vê algo inacreditável. A vegetação da margem está próxima, não mais de cinquenta metros. Júlio reúne suas últimas forças e tenta algumas braçadas até que seus pés sentem o leito do Guaíba.

Júlio e Ettore repousam nos matagais próximos e despertam com dia claro. Junto a um casebre, roubam roupas estendidas no varal e seguem percorrendo a orla, tentando descobrir uma forma de chegar a Porto Alegre. Deparam-se com uma obra junto à margem, onde há uma pequena lancha a motor estacionada. Júlio vale-se de sua lábia para iludir o capataz. Diz que são pescadores e necessitam resgatar seu barco que havia emborcado no rio.

A bordo da lancha Floresta, eles costeiam a área central do município de Guaíba e rumam céleres em direção a Porto Alegre. À altura do Armazém C1 do Cais central, os aguarda uma lancha repleta de policiais armados. A fuga mais inusitada da história de Porto Alegre chega a o final, mas não seria a última de Júlio de Castilhos Pettinelli.

Epílogo

(...)

Da pena inicial de dois anos por furto leve, Júlio de Castilhos Pettinelli cumpriu um total de 28 anos de prisão. Ainda estava preso quando casou com Flávia e nasceram seus três filhos. Solto, penou um longo tempo até conseguir seu primeiro emprego de carteira assinada na loja de materiais de construção Ferraço, com quase 60 anos de idade.

(Do livro “20 Relatos Insólitos de Porto Alegre”, 
de Rafael Guimaraens)

*A Ilha do Presídio também é chamada de Ilha das Pedras Brancas.


Como fugir da ilha?

De barco, era a única forma de sair da ilha. A nado, dificílimo; conseguir um barco, improvável; fazer um barco, impossível; conseguir fugir da ilha, nem pensar! Um conseguiu fugir de caiaque. Outros tentaram, mas morreram afogados.

Histórico da Ilha

→ A ocupação da Ilha das Pedras Brancas iniciou em 17 de julho de 1857, quando o Exército construiu no local a 4ª Casa da Pólvora de Porto Alegre, que funcionou até meados de 1930. Na década de 50, passa ser utilizada como laboratório para desenvolver vacina contra a peste suína.
Casa prisional até 1983.

→ Em 1956, a ilha passa a abrigar uma penitenciária de segurança máxima. Durante a ditadura, uma ala da casa prisional recebe presos políticos. Em 1973, a prisão é desativada, reabrindo em 1980. Denúncias de torturas e maus-tratos levam o governo do RS a desativar o presídio em 1983.

→ Após a desativação do presídio, surgiram muitos projetos de ocupação, mas, até hoje, nenhum foi colocado em prática. A ideia agora é implantar um Espaço Gourmet na ilha, possibilitando alternativa de happy hour aos visitantes.

Cronologia

1857: A 4ª Casa de Pólvora é erguida pelo Exército imperial;

1930: A ilha é abandonada pelos militares;

Década de 1950: Passa a abrigar um laboratório de pesquisa para vacina contra a peste suína;

1956: Transformada em prisão;

1956: Júlio de Castilhos Pettinelli e Ettore Capri fogem navegando em um imenso panelão;

1964: Presos políticos passam a ser enviados para a ilha;

1972: Raul Pont e Carlos Araújo (políticos gaúchos) são transferidos para a ilha;

1973: Presídio é desativado pela 1ª vez, com morte de Eduardo Alves da Silva, ladrão de automóveis preso irregularmente;

1980: O sequestro do cardeal dom Vicente Scherer motiva a reativação do presídio pelo governador Amaral de Souza;

Abril de 1981: Comissão de Cidadania e Direitos Humanos inspeciona o presídio em razão de denúncias de maus-tratos;

6 de setembro de 1981: O estelionatário Jardelino de Barros foge da ilha de caiaque;

25 de fevereiro de 1982: O veleiro do juiz Monte Lopes é metralhado por suspeita de tentativa de ataque à ilha;

18 de setembro de 1982: Os traficantes João Carlos Faleiro e Hector Martins Thomaz morrem afogados durante a fuga;

4 de abril de 1983: Governador Jair Soares fecha a prisão;

8 de abril de 1983: A administração da ilha passa para a Secretaria de Turismo;

2005: Prefeitura de Guaíba é autorizada a explorar a ilha por cinco anos;

Março de 2010: Governo do Estado amplia a cedência da ilha para Guaíba por mais 25 anos.

(Correio do Povo)

O fujão e a panela

Por Renato Dornelles


A história com a qual abro o meu Arquivo B.O. ocorreu na Ilha do Presídio, há quase 60 anos. Antes de mais nada, é preciso situar o leitor acerca do cenário. Geograficamente falando, trata-se de uma pequena e rochosa ilha localizada no meio do Guaíba. Para quem a observa a partir de Porto Alegre, fica na altura da Vila Assunção.

Como cárcere, abrigou presos políticos durante a ditadura e, inclusive, recebeu uma visitante que viria ser presidente da República, décadas depois. Mas isso é história para outro dia. A utilização como prisão pela primeira vez deu-se de 1956 a 1973. Reativado em 1980, o presídio voltou a ser fechado, definitivamente, em 1983.

Os primeiros apenados levados para o local foram transferidos da Casa de Correção, ou o Cadeião da Volta do Gasômetro, em 1956. Logo na chegada, o diretor da prisão os reuniu no pátio e avisou: “Aqui não há possibilidade de fugas”.

No entanto, um dos internos, Júlio de Castilhos Pettinelli, condenado por estelionato, levou apenas três meses para desmenti-lo. Encarregado de lavar os enormes panelões nos quais era feita a comida, o apenado certo dia embarcou em um deles e, com uma colher de pau como remo, decidiu encarar o Guaíba. Dizem que levou praticamente um dia para chegar em terra firme. Esse deve ter sido o problema: a demora permitiu que notassem sua ausência. Quando “atracou”, já estava sendo aguardado pelos policiais.

Mesmo que sua suposta liberdade tenha durado tão pouco, Pettinelli, ao menos, conseguiu entrar para a história do sistema penitenciário gaúcho, quiçá brasileiro ou até mundial, pela originalidade de seu plano de fuga.

(Da coluna Boletim de Ocorrência, no Diário Gaúcho, abril de 2005)


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