terça-feira, 30 de janeiro de 2018

No tempo do realejo

Por Antônio Goulart


Realejo na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, nos anos 1920.

A geração deste milênio nunca viu um realejo e provavelmente nem saiba do que se trata, embora tenha surgido na Europa há mais de 200 anos. É o nome de uma caixa musical feita artesanalmente, dotada de foles e um cilindro. Acionando um dispositivo e girando uma manivela, podem-se ouvir vários tipos de música.

A finalidade do instrumento portátil era atrair curiosos, que, mediante a introdução de uma moeda, viam um pequeno periquito pegar com o bico um pedacinho de papel onde estava escrito algo ligado ao futuro do interessado. Já foram utilizados macacos em lugar de pássaros, daí por que o realejo era também conhecido como o mico da sorte.

Chegou ao Brasil, onde nunca foi fabricado, no início do século passado. Segundo informações, no interior de São Paulo e em alguns pontos do país, ainda hoje existem raros exemplares de realejo, que são levados como atração a eventos, feiras e festas de casamento.

Em Porto Alegre, o colunista lembra ter visto um deles, na década de 1960, no Parque Farroupilha. Era conduzido sobre um carrinho com rodas. Provavelmente, um dos últimos a se apresentar por aqui.

Mário Quintana (1906-1994), no livro Canções, de 1946, tem um poema que abre com esta estrofe: 

O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
De carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!

João do Rio (1881-1921), numa crônica sobre músicos ambulantes, cita o caso de um cidadão que compra um realejo com bonecos mecânicos e, mediante certos truques, ganha muito dinheiro.

O escritor, estendendo-se sobre o assunto, observa que há realejos que sustentam numerosas famílias, realejos escravizadores, realejos solteiros e malandros e “realejos virgens prontos para a fuga”.

Pode-se dizer que a tradição folclórica do realejo está em extinção. Quem possui um, guarda-o a sete-chaves e cuida muito bem do instrumento.
  
(Do Almanaque Gaúcho de Zero Hora, janeiro de 2018)


Exemplar bem conservado do instrumento portátil



2 comentários:

  1. É bem romântica a canção do realejo. Era num bairro afastado...

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    Respostas
    1. Velho realejo

      Custodio Mesquita e Sady Cabral

      Naquele bairro afastado,
      Onde em criança vivias
      A remoer melodias
      De uma ternura sem par.

      Passava todas as tardes
      Um realejo risonho.
      Passava, como num sonho,
      O realejo a tocar.

      Depois, tu partiste,
      Ficou triste a rua deserta.
      Na tarde fria e calma,
      Ouço ainda o realejo a tocar.

      Ficou a saudade
      Comigo a morar.
      Tu cantas alegre e o realejo
      Parece que chora com pena de ti.

      Depois, tu partiste,
      Ficou triste, a rua deserta.
      Na tarde fria e calma,
      Ouço ainda o realejo a tocar.

      Ficou a saudade
      Comigo a morar.
      Tu cantas alegre e o realejo
      Parece que chora, com pena de ti.

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