sábado, 20 de janeiro de 2018

O difícil facilitário do verbo ouvir


Artur da Távola


Um dos maiores problemas de comunicação, tanto a de massas como a interpessoal, é o de como o receptor, ou seja, o outro, ouve o que o emissor, ou seja, a pessoa falou. Numa mesma cena de telenovela, notícia de telejornal, num simples papo ou discussão, observo que a mesma frase permite diferentes níveis de entendimento. Na conversação dá-se o mesmo. Raras, raríssimas, são as pessoas que procuram ouvir exatamente o que a outra está dizendo.

Diante desse quadro venho desenvolvendo uma série de observações e como ando bastante entusiasmado com a formulação delas, divido-as com o competente leitorado que, por certo, me ajudará passando-me as pesquisas que tenha a respeito. Observe que:

01) Em geral o receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que o outro não está dizendo.

02) O receptor não ouve o que o outro fala: ele ouve o que quer ouvir.

03) O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que já escutara antes e coloca o que o outro está falando naquilo que se acostumou a ouvir.

04) O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que imagina que o outro ia falar.

05) Numa discussão, em geral, os discutidores não ouvem o que o outro está falando. Eles ouvem quase que só o que estão pensando para dizer em seguida.

06) O receptor não ouve o que o outro fala. Ele ouve o que gostaria ou de ouvir ou que o outro dissesse.

07) A pessoa não ouve o que a outra fala. Ela ouve o que está sentindo.

08) A pessoa não ouve o que a outra fala. Ela ouve o que já pensava a respeito daquilo que a outra está falando.

09) A pessoa não ouve o que a outra está falando. Ela retira da fala da outra apenas as partes que tenham a ver com ela e a emocionem, agradem ou molestem.

10) A pessoa não ouve o que a outra está falando. Ouve o que confirme ou rejeite o seu próprio pensamento. Vale dizer, ela transforma o que a outra está falando em objeto de concordância ou discordância.

11) A pessoa não ouve o que a outra está falando: ouve o que possa se adaptar ao impulso de amor, raiva ou ódio que já sentia pela outra.

12) A pessoa não ouve o que a outra fala. Ouve da fala dela apenas aqueles pontos que possam fazer sentido para as idéias e pontos de vista que no momento a estejam influenciando ou tocando mais diretamente.

Esses doze pontos mostram como é raro e difícil conversar. Como é raro e difícil se comunicar! O que há, em geral, são monólogos simultâneos trocados à guisa de conversa, ou são monólogos paralelos, à guisa de diálogo. O próprio diálogo pode haver sem que, necessariamente, haja comunicação. Pode haver até um conhecimento a dois sem que necessariamente haja comunicação. Esta só se dá quando ambos os polos ouvem-se, não, é claro, no sentido material de escutar, mas no sentido de procurar compreender em sua extensão e profundidade o que o outro está dizendo.

Ouvir, portanto, é muito raro. É necessário limpar a mente de todos os ruídos e interferências do próprio pensamento durante a fala alheia.

Ouvir implica uma entrega ao outro, uma diluição nele. Daí a dificuldade de as pessoas inteligentes efetivamente ouvirem. A sua inteligência em funcionamento permanente, o seu hábito de pensar, avaliar, julgar e analisar tudo interferem como um ruído na plena recepção daquilo que o outro está falando.

Não é só a inteligência a atrapalhar a plena audiência. Outros elementos perturbam o ato de ouvir. Um deles é o mecanismo de defesa. Há pessoas que se defendem de ouvir o que as outras estão dizendo, por verdadeiro pavor inconsciente de se perderem a si mesmas. Elas precisam não ouvir porque não ouvindo livram-se da retificação dos próprios pontos de vista, da aceitação de realidades diferentes das próprias, de verdades idem, e assim por diante. Livra-se do novo, que é saúde, mas as apavora. Não é, pois, um sólido mecanismo de defesa.

Ouvir é um grande desafio. Desafio de abertura interior; de impulso na direção do próximo, de comunhão com ele, de aceitação dele como é e como pensa. Ouvir é proeza, ouvir é raridade.

Ouvir é ato de sabedoria. Depois que a pessoa aprende a ouvir ela passa a fazer descobertas incríveis escondidas ou patentes em tudo aquilo que os outros estão dizendo a propósito de falar.


Um comentário:

  1. Concordo, conversar sem ser ouvido é desgastante , triste, ouvir é se doar para o outro , ai tudo flui.

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