Pietá de Michelangelo
Um enorme bloco de mármore de
Carrara jazia há 35 anos nas oficinas da Catedral de Florença. Estreito, com 5 metros de altura e
conhecido como o Gigante, começou a
ser talhado por Agostino di Duccio, em 1466, e foi logo abandonado pela
dificuldade em arrancar vida de um sólido com proporções tão desfavoráveis. Sua
sombra tinha servido para alertar os escultores florentinos sobre os desafios
de sua profissão. No entanto, o governo de Florença anunciou oficialmente o
nome do jovem Michelangelo Buonarroti, de 26 anos, como aquele que vai tentar,
por fim, dar forma à rocha desafiadora. O tema bíblico de Davi, proposto pelo
artista para enfrentar o “Gigante”, não pôde ser mais adequado. “Davi usou uma
funda para combater Golias. Eu usarei minha pua de escultor”, disse o artista.
Michelangelo vinha sendo aclamado
como o maior escultor da atualidade desde quando terminou uma maravilhosa pietá
– imagem da Virgem com Jesus morto em seus braços, tradicional na arte de
Flandres. O artista se comprometera em contrato a realizar “o mais fino
trabalho em mármore jamais visto em Roma”. O resultado excedeu as expectativas.
O conjunto, em forma de pirâmide, é compacto e monumental. A figura do Cristo
morto ainda parece ter vida correndo nas veias. Os olhos abaixados da Virgem,
ao contrário da tradição, emocionam pela dor e pela resignação. Seu manto,
majestosamente drapeado, arranca do mármore uma leveza imaginável. Na visão
idealista de seu autor, a profunda beleza das duas figuras é a melhor tradução
de sua nobreza de espírito.
Nos dias que passou analisando os
veios e a estrutura do Gigante,
Michelangelo revelou hábitos espartanos: trabalhava febrilmente, comia apenas um
pedaço de pão no meio da jornada e tinha nas garrafas de vinho branco de
Trebianno sua única concessão ao prazer. Dormia três horas por noite,
geralmente calçado e com as roupas usadas durante o dia. Por vezes ficava tanto
tempo sem tirar as botas que, ao fazê-lo, arrancava pedaços da pele dos pés. O
promissor artista nasceu em Caprese, ingressou no ateliê de Ghirlandaio aos 13
anos e se tornou um dos protegidos de Lourenço, o Magnífico, até a queda da
família Medici, em 1494. A
lista de seus trabalhos anteriores a pietá
não é extensa: os dramáticos relevos Madona
das Escadas e Batalha dos Centauros (onde não há realmente
centauros), uma estátua de Hércules com 2 metros , três figuras
para a tumba de São Domingos, um Cupido vendido como falsa antiguidade ao
cardeal de San Giorgio in Velabro, em Roma, e um Baco. A amostra, porém, já
fazia prever um Davi portentoso para Florença.
(Texto da revista
Veja Especial – de 2000)
P.S. Foi alterado o tempo de alguns verbos.
A história de Davi
Por Wim Van Aalst*
→ Para reiterar a história
Bíblica de Davi, o jovem pastor que conquistou Golias, o guerreiro filisteu
gigante, apenas com seu arpão e uma pedra, corta a cabeça do gigante e mais
tarde torna-se o lendário rei Hebreu.
→ Era comum na segunda parte do
século XV retratar Davi com a cabeça de Golias, mas aqui uma abordagem mais
diplomática é usada para expressar o tema, um Davi solitário vislumbra o
horizonte distante, o seu sobrolho franzido, avalia a força do seu oponente
instantes antes da luta.
A sua expressão tensa contrasta
fortemente com a sua pose relaxada. Ele está alerta, e, ao mesmo tempo, relaxado;
sem medo, mas não gabarola. As suas pupilas são em forma de coração. Tudo o que
ele vê é o alcance do seu coração, a sua postura gloriosa prevê já a vitória.
As imperfeições da estátua
→ Existem algumas imperfeições
anatômicas na estátua que deixaram perplexos, ao longo dos séculos, aqueles que
a apreciaram. Estas ‘falhas’ são difíceis de explicar, como simples erros, dado
que Michelangelo era um profundo conhecedor da anatomia humana.
→ A cabeça de Davi demasiado
grande e o seu torso ligeiramente aumentado são geralmente assumidos como uma
escolha deliberada, para corrigir o volume diminuído da parte superior, que é
percebida pela perspectiva do observador. A estátua tinha originalmente como
destino o telhado da catedral de Florença.
→ É uma teoria que realmente faz
sentido: nessa altura, a perspectiva não tinha segredos para os artistas
italianos. Mas isso não explica a mão direita anormalmente grande.
→ Podíamos supor que o tamanho da
mão direita tinha como propósito servir para equilibrar a atenção do
observador, mas isto é pouco provável, pois a definição exagerada dos mamilos
já é suficiente para equilibrar a nudez pélvica. Portanto qual a razão deste
‘erro’?
→ Michelangelo compreendeu a
importância de fazer com que este rapaz pastor parecesse capaz de derrubar um
gigante – e em mais do que um contexto. Junto com a motivação religiosa, o tema
do desprivilegiado que se torna vencedor também é importante na concessão da
obra.
→ Nessa altura, Florença era uma
cidade-estado independente ameaçada por poderosos rivais. Não seria suficiente
se Davi fosse somente um rapaz bem parecido, exibindo apenas beleza e
elegância. Ele teria que dar a impressão de ser um indivíduo que não deveria ser
desconsiderado. E assim é.
→ Michelangelo foi bem sucedido
na expressão da história Bíblica com diplomacia e eficiência. Esta estátua não
é a figura de um desprivilegiado – é um aviso imbuído de uma glória
avassaladora. “Não importa o quão grande é o rufião, ele irá pagar caro se desafiar
o povo de Deus”.
→ Da base da estátua, essa mão
enorme repousa ameaçadoramente como uma arma de alto calibre. Se houver desejo
de confrontação, rapidamente esta se dissipa.
→ Nunca iremos saber em que
medida a magnificência desta estátua contribuiu para assegurar a paz ou evitar
invasões estrangeiras, mas, sem dúvida, a absoluta capacidade artística que
esta peça inspira causou admiração dos estrangeiros e conseguiu mais respeito
do que seria possível conseguir com uma mensagem ameaçadora.
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*Wim Van Aalst possui um mestrado
em publicidade e design gráfico. Pintor autodidata, ele começou o seu trabalho
como artista profissional em 2008 ensinando aos estudantes as técnicas e
teorias da pintura a óleo tradicional.
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Certa vez alguém encontrou
Michelangelo esculpindo com seu formão numa enorme rocha sem forma. A pessoa
indagou ao escultor o que ele estava fazendo. “Estou soltando o anjo
aprisionado nesta rocha.” Ele respondeu.
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