segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O pracinha Carlos Scliar



Joel Silveira cobriu a guerra como correspondente. Em um inverno italiano encontrou o pintor e pracinha Carlos Scliar. Foi assim:

“A primeira vez que vi o pracinha Carlos Scliar, lá no front fazia um frio medonho. As nevadas haviam coberto tudo: todos os caminhos, os pinheiros, os plátanos e os ciprestes. Havia endurecido as águas e paralisado, como num filme subitamente interrompido, as pequenas cascatas que no outono caiam livres defronte do P.C. da Artilharia. Naquele tempo, o cabo Scliar tinha que manipular um trabalho burocrático e cansativo: ficar atento ao telefone, receber pedidos de tiros, falar com o tenente ao lado e receber do tenente a autorização para ordenar fogo às baterias do seu grupo. 'Dois tiros na cota 65. Quatro tiros de morteiro na região de Bombina. Cinco de artilharia na fralda sul do Monte Castelo'. Toda a frente do 5º Exército era, então, uma mesma coisa. Ninguém se arriscava a um ataque tendo pela frente o inverno duro - nem nós, aliados, nem os nazistas, dois quilômetros além. Uma guerra apenas de patrulhas, de troca de tiros, de inquietação.”

“Encontrei-me várias outras vezes com o pracinha Scliar e, em uma delas, me lembro bem, as coisas não estavam muito risonhas em seu P.C. Acontece que um dos canhões nazistas havia, parece, localizado uma bateria brasileira próxima; e durante toda uma tarde, enquanto conversávamos, as granadas ficaram explodindo perto. O edifício tremia todo, de vez em quando alguma coisa passava gemendo ou assoviando sobre nossas cabeças. Alguma coisa que ia arrebentar metros além, cavando uma ferida negra na neve imaculada.”

“Em outra ocasião, o pracinha Scliar me revelou que estava usando 'um branco inteiramente diferente', fruto da inspiração que lhe haviam dado a neve e o gelo. Foi nessa ocasião que ele me declarou mais ou menos o seguinte: 'Quando eu saí do Brasil, tinha uma ideia inteiramente errada a respeito das cores. Que é que tem um crepúsculo italiano, por exemplo, com um crepúsculo do Flamengo ou de Porto Alegre? E você já viu quantas cores tem o sol daqui?”

“Então, o inverno era total, e todos afundávamos na neve. Os pracinhas se enterravam nas mantas e quanto mais o termômetro descia - 14, 15, 16 graus abaixo de zero - mais eles se tornavam murchos e calados. Um dos cadernos de Carlos Scliar está repleto de fisionomias assim, e sem dúvida foi a própria experiência do pracinha-desenhista, em tantas ocasiões também enregelado e murcho, que imprimiu àquelas caras o ar profundamente vivo, melancolicamente vivo, que todas elas trazem.”


“Trouxe comigo uns vinte desenhos do pracinha Scliar, mas deixei lá, com ele, uns 200 ou 300 mais. Seu plano é reunir os melhores trabalhos e publicá-los em um álbum, o álbum do pracinha brasileiro. Se ele fizer isto, acredito, terá contado melhor do que ninguém, melhor mesmo do que nós, os correspondentes, a história da Força Expedicionária - pracinhas lutando, dormindo e comendo, pracinhas mortos e vivos, paisagens e trincheiras, a neve caindo como uma mortalha, a lama de outono, as montanhas iluminadas pela primavera, derrotas e vitórias, a poeira dos caminhos secos pelo sol, patrulhas e baterias, sfolatti e prisioneiros, civis desmantelados pela guerra, enfim. A guerra que somente um pracinha como ele poderia ver, compreender e reproduzir.”

Do livro “Historias de pracinha”, Joel Silveira,
Ilustrações de Carlos Scliar



Acima, o cabo Scliar

Depoimento de Wremir Scliar

Flávio Alcaraz Gomes publicou no jornal O SUL, de Porto Alegre, uma crônica intitulada “O pracinha Carlos Scliar”, a respeito do pintor gaúcho de Santa Maria foi cabo de comunicações na II Guerra.

A crônica reproduz um trecho do correspondente de guerra Joel Silveira, é muito oportuna, porque os 42 soldados judeus brasileiros que estiveram com a FEB na Itália, combatendo o nazismo. No dia 19 de outubro, O Exército brasileiro, a Federação Israelita do Rio de Janeiro, outras entidades e autoridades fizeram uma homenagem a todos os soldados judeus brasileiros que estiveram na FEB, dentre eles o Carlos Scliar.

Do conflito, Carlos Scliar fez vários desenhos que depois foram reunidos nos “Cadernos de Guerra”, com desenhos de prédios e figuras de soldados, todos murchos de frio, tristes. Vivos, mas melancólicos pela selvageria da guerra.

Entretanto, há outros episódios ainda não narrados e que o Carlos me revelara: o atendimento a um menino italiano que estava com uma infecção, tratado por um capitão-médico brasileiro. O avô do menino era um famoso antiquário de Milão e, em retribuição, levou o Carlos para conhecer o famoso e já consagrado pintor italiano Morandi, em um castelo nos arredores daquela cidade. Morandi já era quase um ancião e deu um presente ao Carlos, pela sua surpresa de que houvesse um soldadinho brasileiro no outro lado do mundo e que conhecesse o grande pintor italiano.

Morandi deu ao Carlos uma placa de madeira com uma madona em ferro batido. Dezenas de anos após, essa peça foi examinada pelos peritos do Museu de Arte Moderna de Nova York, quando então se constatou que a madeira era da idade média, assim como a madona em ferro batido e cujo valor era inestimável.

São histórias da guerra. Graças ao Mascarenhas de Moraes, Carlos Scliar conseguiu permissão para entrar nos museus de Florença e ali, sozinho, além do branco da neve que tanto lhe impressionou, pode ver as grandes obras da Renascença.

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Carlos Scliar (Santa Maria, RS, 21 de junho de 1920 − Rio de Janeiro, RJ, 28 de abril de 2001). Pintor, desenhista, gravador, ilustrador, cenógrafo, roteirista, designer gráfico.



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