sábado, 17 de fevereiro de 2018

A formação intelectual de um gênio

Machado de Assis


Machado de Assis retratado por Marc Ferrez

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) nasceu pobre, em família de trabalhadores manuais, num Rio de Janeiro plenamente escravagista e capital do império brasileiro. Seu pai, filho de escravos alforriados, era pintor de paredes, e ao que tudo indica era também dourador, quer dizer, sabia fazer aqueles arabescos e vinhetas que enfeitavam as paredes de casas ricas e médias em seu tempo. Sabia ler, informação que temos porque havia assinatura de almanaque em seu nome. A mãe de Machado era portuguesa imigrada, talvez aos seus 12 anos de idade, pobre e trabalhadora: provavelmente foi empregada doméstica na casa-grande em que o futuro escritor nasceu e viveu até seus 5 anos de idade.

Neto de escravos de um lado, filho de imigrante pobre por outro – e órfão de mãe na infância. Sua única irmã morreu doente, antes dos 7 anos. Como estudou? Quanto estudou? Pouco se sabe ao certo. De concreto, temos as evidências de sua alta inteligência e capacidade de trabalho. Desde os 15 anos publica regularmente na imprensa e em livros. Conhece uma impressionante ascensão social: de pobre, passa à classe remediada como trabalhador intelectual (depois de passagens como aprendiz de tipógrafo e caixeiro, foi jornalista até os 30 anos de idade), e daí para as classes funcionalmente superiores depois de ingressar na burocracia federal.

Não tinha curso superior, aliás, quase inexistente na época no país, mas era funcionário letrado, trabalhando em altas esferas da administração federal. Trabalhando mesmo: entre seu ingresso no serviço público, lá por 1870, e sua morte, praticamente não tirou férias, nem aceitou ser aposentado quando já podia. Deu expediente até o último mês de vida. E isso tudo enfrentando uma doença silenciosa e implacável, a epilepsia. Consta que ela o acompanhou desde a meninice, e retornou com força em seus 40 anos – hoje se associa esse fenômeno justamente ao estresse. Tinha medo de ser acometido por um ataque em situação pública, o que de fato ocorreu.

Morreu com quase 70 anos de idade, depois de um casamento amoroso, de que não resultaram filhos, com uma portuguesa de grande preparo intelectual, que foi sua companheira de cama, mesa e escrivaninha. Nunca viajou para além de uns 100 quilômetros em volta de sua cidade, não saiu do Brasil jamais; mas foi o grande animador e líder da criação da Academia Brasileira de Letras, que tem lá um forte lado conservador, mas é também uma importante instituição de cultura, num país tão frágil nessa área. Deixou dez romances, mais de 200 contos, centenas de crônicas, umas quantas peças de teatro, muitíssimas resenhas e artigos, cartas e pareceres, uma obra enfim que chega fácil à casa de umas 4 mil páginas impressas. Em sua obra, a capital do Brasil e, mais amplamente, a experiência ocidental foram acompanhadas, de 1854 até 1908. Não é pouca coisa.

(Excerto do texto “Machado e Borges”, de Luis Augusto Fischer,
Correio do Povo, fevereiro de 2018)


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