Carneirinho, médico (São Paulo, 1994)
O carneirinho era loirinho, cabelo
encaracolado. Daí, o apelido. Quando éramos jovens, ele era o mais bonito, o
mais simpático, o mais bem vestido. Namorava todas as meninas da cidade. Todas
as meninas adoravam o Carneirinho. Mas ele nunca se casou.
Depois, formou-se em medicina, veio
para São Paulo, montou uma clínica maravilhosa. E continuou a conquistar todas
as mulheres.
Via pouco, o velho amigo. Mas, cada
vez, ele estava com uma mulher diferente. Maravilhosas. Aviões, como ele
gostava de dizer. Mas nunca se casou, embora eu tenha ficado sabendo de dois ou
três esparsos noivados nos últimos 30 anos.
Na semana passada, encontrei-me com ele
na Mercearia São Pedro. Continua um tipo bonito, mas cachinhos loiros já não há
mais. O pouco que lhe restou já está branco. Mas continua o mesmo: bonito,
elegante, rico e, como sempre, muito bem acompanhado.
Começamos a beber e o Carneirinho,
que sempre foi fraco com o álcool, desandou a me explicar por que não ficava
muito tempo com a mesma mulher, por melhores que fossem.
− Acho que eu fico
procurando a mulher perfeita. Sei que não tem, mais insisto. Em cada uma,
depois de um tempo, eu começo a encontrar defeitos. Defeitos físicos, pequenas,
mas que, com o passar do tempo, aquilo vai crescendo na minha cabeça. Por
exemplo, lembra da Lurdica? Tinha joanete. Aquele joanete foi crescendo na
minha cabeça. Um dia cheguei à conclusão que não podia conviver mais com um
joanete.
− E a Celinha?
−
Falava menas. Eis a questã.
− A Glória?
−
Como é que eu podia continuar beijando aquele avião, com aquele canino superior
direito? Saltado. Ninguém observava, mas eu sabia. A Bia tinha muito pelo no
braço, lembra? Parecia o bigode da Cidoca. Lembra da Paulinha? Tinha um dos
bicos do seio para dentro. A Lilu você devia saber do mau hálito dela. Vinha lá
do estômago, do útero, sei lá.
− E a Candinha?
− Roía unha. Até do
pé. A Selminha tinha a testa muito avançada, lembrava a minha mãe. Lembra da
Rose? Quando ria, dava murrinhos na mesa: não podia conviver com aquilo.
− E a Joana: Você ficou noivo da
Joana também.
− A Joaninha era legal,
mas tinha orelhas enormes. Nunca reparou? Eu tinha a impressão que cada dia
estavam maiores. A Maria C. não tinha orgasmo. Fiz de tudo. A Julinha, quando
tinha orgasmo, virava os olhos para cima: parecia que estava tendo um ataque
epilético.
− E a Carmen Lúcia? Aquela não tinha
nenhum defeito.
− Como não? Não sabia
quem era a Sarita Montiel e muito menos o Hemingway. E O Velho e Mar, ela
achava que era o avô dela. A Carlota também, nunca tinha lido um livro. Aliás,
tinha lido o Caminho Suave.
− Mas todo mundo achava que você ia
se casar com a Ledinha.
− Era linda, mas o
cabelo meio pixaim. Meus pais não iriam gostar. A Leia, por exemplo, tinha dois
dedos do pé meio grudados. Morria de vergonha dela, na praia. A Gegê tinha
lábio inferior meio viradinho, lembra? Boca pequena. E por falar em boca, a
Lucinha beijava de boca fechada, pode? Ao contrário da Dequinha que mordia a
minha língua toda vez.
− E aquela fazendeira de Ribeirão
Preto?
− Marina? Peito caído.
Já a Ciça tinha o joelho caído. Já viu mulher de joelho caído? A Marcinha era
perfeita, mas a mãe dela rezava terço todo o dia. E ela morava com a mãe.
Parecia a casa do Nelson Rodrigues.
− E aquela francesa que eu te vi uma
vez na...
− Michele. Você não viu
os pés dela, né? Então não fala nada. Fora isso, tinha aquele narizinho
arrebitado, lembra?, de onde saíam chumaços de pelos. E não era muito chegada a
uma Sabesp. Toda mulher tem seu defeito, meu amigo. Mais um dia, menos dia,
você tem que enfrentar o inimigo. A Letícia não falava inglês. Levei ela para a
Europa e passei vergonha.
− Então você nunca vai achar uma
mulher perfeita, Carneirinho.
Um dia eu acho, um
dia eu acho.
Ia me esquecendo de dizer que neste
encontro com ele na Mercearia, ele estava com um garoto, com pouco mais de 20
anos, loiro, cabelos encaracolados, elegante, educado e tatuado, que ele me
apresentou como “primo”.
Sei não, Carneirinho, sei não.
*****
(Do livro “Minhas
Mulheres e Meus Homens”, de Mário Prata)
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