quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Era bullying



Eu sempre me lembro de uma menina cujo nome esqueci. Ela foi minha colega de aula no ensino fundamental, que era chamado de Primário. Era uma guria triste, fechada, isolada. Sentava-se na primeira fila, mas nunca falava. Parecia alheia a tudo. Era muito pobre. Nos intervalos, ficava sozinha. Nem saía da sala. Todos implicavam com ela. Inventavam mil apelidos para ela, que não se defendia. Apenas se encolhia. Às vezes, tapava o rosto com a mão direita e assim ficava.

Uma tarde, voltei à sala, suado de um jogo de futebol, para pegar minhas figurinhas na pasta e dei com ela sentada no seu lugar com a cabeça entre os braços. Foi a primeira vez que vi a infelicidade em pessoa. Toquei no ombro dela. A menina levantou lentamente a cabeça. Ficou me olhando sem sorrir, sem mexer os lábios, sem nada. Eram olhos marrons de uma tristeza imensa, uma melancolia devastadora. Aquilo me entrou pela alma e eu não aguentei. Saí correndo sem as figurinhas. Fui me sentar numa pedra do pátio. Contive as lágrimas.

Creio que uma vez ela reclamou para um professor. Nada aconteceu. Cada um que se defendesse. Um dia, ela sumiu. Passou quase um mês sem aparecer na aula. Quando voltou, apesar de ser quase verão, usava uma touca de linha, que lhe dava, segundo a turma inteira, um ar de astronauta. Falava-se muito em astronauta na época. Por que ela usava aquilo? Não se demorou muito a saber: estava careca. Um colega puxou-lhe a touca e ela ficou com a cabeça nua diante de todos. Chorou. Estava doente. Acho que fazia quimioterapia. Nem a certeza que estava doente diminuiu a maldade geral. Continuou a ser infernizada.

Eu me identificava vagamente com ela, mas não sabia como defendê-la. Enfrentava diariamente um apelido que me revoltava: nariz de fumar na chuva. Vem daí minha aversão a qualquer brincadeira que envolva aspectos físicos das pessoas. A palavra bullying não existia. O fenômeno, sim. Outras duas ou três vezes eu tentei me aproximar dela. Não funcionou. Ela percebia minha ambiguidade. Eu olhava para ela com certa afetividade, mas andava com a galera que a incomodava. A turma percebeu meu interesse e pegou do meu pé. Ganhei outro apelido:

− Namorado da astronauta careca.

Penso nessa menina frequentemente. Ela simboliza uma parte triste da infância. Sofria. Não era poupada. Crianças podem ser impiedosas. Terá ela vencido a doença? Terá sido feliz? Por onde andará? Eu preferiria uma palavra em português. Talvez mesmo implicância desse conta. Em todo caso, serve bullying. Denominar o monstro ajuda a combatê-lo. Outro dia, de repente, me veio à memória uma imagem improvável: a menina saindo da escola, com sua touca preta e o uniforme do colégio, dobrando a esquina, junto a uma casa com um enorme cipreste, e sumindo sem olhar para trás. Teria sido a última vez que a vi? Era um fim de tarde ensolarado, mas eu me sentia triste.

Quantos anos se passaram até que eu soubesse a verdade: aquela menina sofria bullying. Nunca esquecerei seus olhos tristes. Há tantas coisas que não esquecemos talvez por nos lembrarem da crueza do mundo.

Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo, janeiro de 2018.
(juremir@correiodopovo.com.br)



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