quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Uma tradição de Porto Alegre


Procissão dos Navegantes
           
É a tradição. Todos os anos, em Porto Alegre, ocorre, no dia 2 de fevereiro, a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. Neste, a 143ª, foi numa sexta-feira, motivando o feriadão.  Assim mesmo, dizem  que mais de cem mil eram os romeiros que, da Igreja do Rosário, do Centro, sob um sol escaldante e sobre o piso preto de asfalto quente, por mais de quatro quilômetros, acompanharam a imagem de Nossa Senhora até Igreja dos Navegantes; muitas cabeças descobertas e inúmeros pés nus pagaram suas promessas com sofrimentos físicos.


Esta procissão que se transforma em festa é do povo. E ao local, sob os ramos da intersecção junto à ponte sobre o Guaíba, ao lado da igreja, também afluem por todos os lados pessoas devotas, simples, pagadores de promessas ou confiantes na proteção de Nossa Senhora. Na homilia, durante a missa, o arcebispo Dom Jaime Spengler confortava o povo com a certeza de que nunca se ouvira falar de que a proteção de Maria  tenha falhado a  quem a ela tenha recorrido. E por essa certeza, pode-se entender, é que as pessoas todas acorreram à romaria e à festa: para agradecer, para louvar e para pedir. Pais com suas crianças, idosos com suas bengalas, moços e moças com a esperança e o vigor de sua juventude; brancos, mulatos, pretos, mestiços, sem distinção social ou de raça, todos irmanados em jogar rosas brancas à imagem de Maria, com seu Filho  Deus Menino nos braços.

Enquanto se desenvolvia a missa, enquanto o bispo falava, lembrei-me de verificar a presença de um romeiro especial. No ano passado não aparecera, e, talvez, não retornasse mais, tão longe é sua terra, Aracaju. Mesmo com poucas esperanças, andei pela multidão, por entre as bordas, contornando os grossos pilares dos viadutos, e, lá no último, sobre a sapata, acomodado e cabisbaixo se encontrava a figura de um velho vestido de bata azul, como sempre, boné de pano e brancas barbas. Era ele, o seu Zelito, foto abaixo, o andarilho José Oliveira dos Santos, 84 anos, vim a saber dele depois.


Ainda um pouco afastado, antes mesmo de cumprimentá-lo, uma foto, e ele, ao me ver, parecia esperar por ela. Depois fez pose, aprumou-se, mas não sorriu que fotografia é coisa séria.
           
− O senhor me procurou no ano passado, não foi?

− Sim, respondi, e o senhor não apareceu.

− Sabia que o amigo viria, mas naquela época estive noutra romaria. Agora pude vir. − (De fato, no ano passado, esperava encontrá-lo, como havia encontrado no anterior, pois todos os anos, dissera-me então, vinha para a festa dos Navegantes.)

E dei-lhe, comovido, um abraço. Não lembro bem como prosseguiu a conversa, um pouco interrompida pela alegria e a emoção do encontro.  Em momentos assim,  as palavras são insignificantes. Após um silêncio, como para tomar fôlego, falou muito, disse que andara por outros lugares, e de repente indaga.

− Seu neto já nasceu? − Surpreendeu-me a pergunta porque não o via há mais de dois anos, pelo que não poderia ter-lhe informado que estivesse para ganhar mais um neto, embora tenha comentado sobre o casamento do filho.

− Está com 10 meses.

− Como se chama? − Parece que sabia tudo de mim, se lembrava de meu filho que o conhecera em Santa Maria, quando estranhara sua presença frente à Catedral, há três anos. Ele sempre com mesmas vestes leves. Repetiu meu nome, parecido com o apelido dele, Zelito, talvez por isso tudo.

− Martin – respondi.

− Ah! Bonito nome, comentou. − E ficamos na conversa, ele falando de suas andanças, eu indagando sobre a forma de sua vinda.

− Um conhecido meu que transportava equipamento para Chile deu carona, desde Sergipe.

− Volta com ele?

− É possível, espero que sim, quando retornar.

E ao final da missa, sem a recomendação do “Ite, missa est”, mas com a benção geral do celebrante, invocando Maria, fui apanhar numa banca dois pedaços de melancia. Embora esteja em baixa, ainda é conservada a tradição de saborear melancia na festa de Navegantes. Ele recusou, advertindo-me até de que da outra vez já me havia dito que não mantém esse costume. E churrasquinho? Sim. Foi o que lhe apeteceu.

E ao fim, antes da despedida, firmamos quase que um pacto; no próximo ano, se Deus permitir e quiser, vamos nos encontrar de novo e quem sabe, juntos, para fazermos o percurso inteiro da romaria. Ele sempre está atento à Providência Divina, aceitando a vontade de Deus.

Ele ficou sentado, matutando sobre a vida, apoiado em sua fé na proteção de Maria, Nossa Senhora da Saúde, sua acompanhante estampada na sacola de viagem. Deixei o andarilho José, mas em mim ficou a imagem desse homem simples e abnegado, pouco se importando com o que acontece pelo mundo. O exemplo da fé desse homem pode nos animar e fortalecer na crença da mediação de Maria junto a seu Filho.


O andarilho Zelito e sua sacola de viagem...

 Texto e fotos de Celito M. Brugnara, 4 fevereiro de 2018. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário