Procissão dos Navegantes
É a tradição. Todos os anos, em Porto Alegre , ocorre,
no dia 2 de fevereiro, a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. Neste, a
143ª, foi numa sexta-feira, motivando o feriadão. Assim mesmo, dizem que mais de cem mil eram os romeiros que, da
Igreja do Rosário, do Centro, sob um sol escaldante e sobre o piso preto de
asfalto quente, por mais de quatro quilômetros, acompanharam a imagem de Nossa
Senhora até Igreja dos Navegantes; muitas cabeças descobertas e inúmeros pés
nus pagaram suas promessas com sofrimentos físicos.
Esta procissão que se transforma em
festa é do povo. E ao local, sob os ramos da intersecção junto à ponte sobre o
Guaíba, ao lado da igreja, também afluem por todos os lados pessoas devotas,
simples, pagadores de promessas ou confiantes na proteção de Nossa Senhora. Na
homilia, durante a missa, o arcebispo Dom Jaime Spengler confortava o povo com
a certeza de que nunca se ouvira falar de que a proteção de Maria tenha falhado a quem a ela tenha recorrido. E por essa
certeza, pode-se entender, é que as pessoas todas acorreram à romaria e à
festa: para agradecer, para louvar e para pedir. Pais com suas crianças, idosos
com suas bengalas, moços e moças com a esperança e o vigor de sua juventude;
brancos, mulatos, pretos, mestiços, sem distinção social ou de raça, todos
irmanados em jogar rosas brancas à imagem de Maria, com seu Filho Deus Menino nos braços.
Enquanto se desenvolvia a missa,
enquanto o bispo falava, lembrei-me de verificar a presença de um romeiro
especial. No ano passado não aparecera, e, talvez, não retornasse mais, tão
longe é sua terra, Aracaju. Mesmo com poucas esperanças, andei pela multidão,
por entre as bordas, contornando os grossos pilares dos viadutos, e, lá no
último, sobre a sapata, acomodado e cabisbaixo se encontrava a figura de um
velho vestido de bata azul, como sempre, boné de pano e brancas barbas. Era
ele, o seu Zelito, foto abaixo, o andarilho José Oliveira dos Santos, 84 anos, vim a saber
dele depois.
Ainda um pouco afastado, antes mesmo de
cumprimentá-lo, uma foto, e ele, ao me ver, parecia esperar por ela. Depois fez
pose, aprumou-se, mas não sorriu que fotografia é coisa séria.
− O senhor
me procurou no ano passado, não foi?
− Sim, respondi, e o senhor não apareceu.
− Sabia que o amigo viria, mas
naquela época estive noutra romaria. Agora pude vir. − (De fato, no ano
passado, esperava encontrá-lo, como havia encontrado no anterior, pois todos os
anos, dissera-me então, vinha para a festa dos Navegantes.)
E dei-lhe, comovido, um abraço. Não
lembro bem como prosseguiu a conversa, um pouco interrompida pela alegria e a
emoção do encontro. Em momentos
assim, as palavras são insignificantes.
Após um silêncio, como para tomar fôlego, falou muito, disse que andara por
outros lugares, e de repente indaga.
− Seu neto já nasceu? −
Surpreendeu-me a pergunta porque não o via há mais de dois anos, pelo que não
poderia ter-lhe informado que estivesse para ganhar mais um neto, embora tenha
comentado sobre o casamento do filho.
− Está com
10 meses.
− Como se chama? − Parece que sabia tudo
de mim, se lembrava de meu filho que o conhecera em Santa Maria , quando
estranhara sua presença frente à Catedral, há três anos. Ele sempre com mesmas
vestes leves. Repetiu meu nome, parecido com o apelido dele, Zelito, talvez por
isso tudo.
− Martin –
respondi.
− Ah! Bonito nome, comentou. − E
ficamos na conversa, ele falando de suas andanças, eu indagando sobre a forma
de sua vinda.
− Um
conhecido meu que transportava equipamento para Chile deu carona, desde
Sergipe.
− Volta com
ele?
− É
possível, espero que sim, quando retornar.
E ao final da missa, sem a recomendação
do “Ite, missa est”, mas com a benção
geral do celebrante, invocando Maria, fui apanhar numa banca dois pedaços de
melancia. Embora esteja em baixa, ainda é conservada a tradição de saborear
melancia na festa de Navegantes. Ele recusou, advertindo-me até de que da outra
vez já me havia dito que não mantém esse costume. E churrasquinho? Sim. Foi o
que lhe apeteceu.
E ao fim, antes da despedida,
firmamos quase que um pacto; no próximo ano, se Deus permitir e quiser, vamos nos
encontrar de novo e quem sabe, juntos, para fazermos o percurso inteiro da
romaria. Ele sempre está atento à Providência Divina, aceitando a vontade de
Deus.
Ele ficou sentado, matutando sobre a
vida, apoiado em sua fé na proteção de Maria, Nossa Senhora da Saúde, sua
acompanhante estampada na sacola de viagem. Deixei o andarilho José, mas em mim
ficou a imagem desse homem simples e abnegado, pouco se importando com o que
acontece pelo mundo. O exemplo da fé desse homem pode nos animar e fortalecer
na crença da mediação de Maria junto a seu Filho.
O andarilho Zelito e sua sacola de viagem...
Texto e fotos de Celito M. Brugnara, 4
fevereiro de 2018.
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