sexta-feira, 9 de março de 2018

A Degola em Canudos




E a degola gaúcha se fez presente em Canudos, na Bahia. Euclides da Cunha, ao tratar do gaúcho, tece loas à combatividade da Infantaria do Sul, que qualificou como “uma arma de choque”: “A infantaria do Sul é uma arma de choque. Podem suplantá-la outras tropas, na precisão e na disciplina de fogo, ou no jogo complexo das manobras. Mas nos encontros à arma branca aqueles centauros apeados arremetem com os contrários, como se copiassem a carreira dos ginetes ensofregados dos pampas. E a ocasião sorrira-lhes para a empresa estupenda levada a cabo com brilho inexcedível.”

Apesar desses elogios românticos, a crueza dos fatos venceu o estilo euclidiano. Com seus próprios olhos, o escritor compreendeu o que significava a especialidade daqueles homens no manejo da “arma branca”.

Os gaúchos agarravam cada derrotado pelos cabelos, lhe dobrando a cabeça, esgargalando o pescoço e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Conforme Manoel Benício, correspondente do “Jornal do Commercio”, do Rio de Janeiro, essas degolas ocorriam “sem diferença de sexo e idade”.

Para suas vivências nos cenários da guerra transpunham, assim, as técnicas das “charqueadas” dos pampas, impressionante matadouro destinado a obter a matéria-prima para fabricar o charque (carne-seca), principal produto de exportação, onde se habituavam a conviver com a morte violenta.

É possível imaginar os soldados gaúchos transitando nos espaços dos combates com os canos das botas e as bombachas ensanguentadas, insígnias onde tinham limpado as armas assassinas e onde tinha respingado o sangue das vítimas.

Pensávamos que barbaridades, tão tétricas quanto cabeças decepadas, jamais sairiam do passado. Mas os ditos humanos não têm mesmo jeito. Não é que o barbarismo está de volta? Por sorte, bem longe daqui.

Ele agora nos é servido com uma pitada a mais de crueldade: a divulgação pela Internet dos crimes do “Estado Islâmico”. Os novos Adões Latorre, de rosto escondido, espalham-no pelo mundo, de forma a que todos, inclusive os apavorados familiares das vítimas, o presenciem.


Coronel Joaquim Manuel de Medeiros (segurando um binóculo) 
e oficiais da 1ª Brigada. Foto de Flávio de Barros, em 1897.

(Pesquisa: Nilo Dias)

O degolamento de um prisioneiro


(...) Primitivamente branco, requeimara-se-lhe o rosto, mosqueado de sardas. Pendia-lhe à cintura, oscilante, batendo abaixo do joelho, a bainha vazia de uma faca de arresto. Fora preso em plena refrega. Conseguira derribar, num arremessão valente, três ou quatro praças; lograria escapar se não caísse, tonto, ferido de esconso por uma bala na órbita esquerda. Entrou, jugulado como uma fera, na tenda do comandante da 1ª coluna. Ali o largaram. O resfôlego precipite arguia o cansaço da luta. Alevantou a cabeça e olhar singular que lhe saía dos olhos – um cheio de brilhos, outro cheio de sangue – assustava. Tartamudeou, desajeitadamente, algumas frases mal percebidas. Tirou o largo chapéu de couro e, ingenuamente, fez menção de sentar-se.

Era a suprema petulância do bandido!

Brutalmente repelido, rolou aos tombos pela outra porta, escorjado sob punhos possantes.

Fora, passaram-lhe, sem que protestasse, uma corda de sedenho na garganta. E, levado aos repelões para o flanco direito do acampamento, o infeliz perdeu-se com os sinistros companheiros que o, ladeavam no seio misterioso da caatinga.

Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima uma viva à Republica, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel, Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.

Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...

Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades.

(...)

Como se sabia, o supremo pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte senão pelas suas conseqüências porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a alma.

(...)

Exploravam esta superstição ingênua. Prometiam-lhes não raro a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros as faziam. Na maioria emudeciam estoicos, inquebrantáveis – defrontando a perdição eterna.

(Do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha)




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