E a degola gaúcha se fez presente em
Canudos, na Bahia. Euclides da Cunha, ao tratar do gaúcho, tece loas à
combatividade da Infantaria do Sul, que qualificou como “uma arma de choque”: “A
infantaria do Sul é uma arma de choque. Podem suplantá-la outras tropas, na
precisão e na disciplina de fogo, ou no jogo complexo das manobras. Mas nos
encontros à arma branca aqueles centauros apeados arremetem com os contrários,
como se copiassem a carreira dos ginetes ensofregados dos pampas. E a ocasião
sorrira-lhes para a empresa estupenda levada a cabo com brilho inexcedível.”
Apesar desses elogios românticos, a crueza dos fatos venceu o estilo euclidiano. Com seus próprios olhos, o escritor compreendeu o que significava a especialidade daqueles homens no manejo da “arma branca”.
Os gaúchos agarravam cada derrotado pelos cabelos, lhe dobrando a cabeça, esgargalando o pescoço e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Conforme Manoel Benício, correspondente do “Jornal do Commercio”, do Rio de Janeiro, essas degolas ocorriam “sem diferença de sexo e idade”.
Para suas vivências nos cenários da guerra transpunham, assim, as técnicas das “charqueadas” dos pampas, impressionante matadouro destinado a obter a matéria-prima para fabricar o charque (carne-seca), principal produto de exportação, onde se habituavam a conviver com a morte violenta.
É possível imaginar os soldados
gaúchos transitando nos espaços dos combates com os canos das botas e as
bombachas ensanguentadas, insígnias onde tinham limpado as armas assassinas e
onde tinha respingado o sangue das vítimas.
Pensávamos que barbaridades, tão tétricas quanto cabeças decepadas, jamais sairiam do passado. Mas os ditos humanos não têm mesmo jeito. Não é que o barbarismo está de volta? Por sorte, bem longe daqui.
Ele agora nos é servido com uma pitada a mais de crueldade: a divulgação pela Internet dos crimes do “Estado Islâmico”. Os novos Adões Latorre, de rosto escondido, espalham-no pelo mundo, de forma a que todos, inclusive os apavorados familiares das vítimas, o presenciem.
Coronel Joaquim Manuel de
Medeiros (segurando um binóculo)
e oficiais da 1ª Brigada. Foto de Flávio de
Barros, em 1897.
(Pesquisa: Nilo Dias)
O degolamento de um prisioneiro
(...) Primitivamente branco,
requeimara-se-lhe o rosto, mosqueado de sardas. Pendia-lhe à cintura,
oscilante, batendo abaixo do joelho, a bainha vazia de uma faca de arresto.
Fora preso em plena refrega. Conseguira derribar, num arremessão valente, três
ou quatro praças; lograria escapar se não caísse, tonto, ferido de esconso por
uma bala na órbita esquerda. Entrou, jugulado como uma fera, na tenda do
comandante da 1ª coluna. Ali o largaram. O resfôlego precipite arguia o cansaço
da luta. Alevantou a cabeça e olhar singular que lhe saía dos olhos – um cheio
de brilhos, outro cheio de sangue – assustava. Tartamudeou, desajeitadamente,
algumas frases mal percebidas. Tirou o largo chapéu de couro e, ingenuamente,
fez menção de sentar-se.
Era a
suprema petulância do bandido!
Brutalmente
repelido, rolou aos tombos pela outra porta, escorjado sob punhos possantes.
Fora, passaram-lhe, sem que
protestasse, uma corda de sedenho na garganta. E, levado aos repelões para o
flanco direito do acampamento, o infeliz perdeu-se com os sinistros companheiros
que o, ladeavam no seio misterioso da caatinga.
Chegando à primeira canhada
encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à
vítima uma viva à Republica, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo
invariável de uma cena cruel, Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a
cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e francamente exposta a garganta,
degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos
lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.
Um golpe
único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...
Tínhamos valentes que ansiavam por
essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes
militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a
palma no estadear idênticas barbaridades.
(...)
Como se sabia, o supremo pavor dos
sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte senão pelas suas
conseqüências porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a
alma.
(...)
Exploravam esta superstição ingênua.
Prometiam-lhes não raro a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros as faziam.
Na maioria emudeciam estoicos, inquebrantáveis – defrontando a perdição eterna.
(Do livro “Os
Sertões”, de Euclides da Cunha)
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