segunda-feira, 28 de maio de 2018

História dos Três Heróis

Hylario Corrêa


“Senhor redator: Como funcionário público, tenho que fazer prova de que participei da Revolução Constitucionalista, a fim de fazer jus às vantagens que a lei me confere. Entretanto, não guardei sequer o capacete de aço que usei por três meses de puro entusiasmo bandeirante e de ardor bélico. Joguei-o no rio Tietê, juntamente com tudo que pudesse denunciar-me como participante de um movimento armado. Como poderia eu suspeitar, naquela ocasião, que mais tarde iríamos ser recompensados pelo que nos momento era motivo de cadeia e exílio?

Peço-lhe o favor de publicar a minha história. Juntá-la-ei depois nos autos do meu processo reivindicatório.

Participei da guerra que os paulistas fizeram em 1932. Um dia, tivemos ordem de assaltar o inimigo à baioneta. O plano era pular da trincheira e correr, correr para a frente, gritando bastante a fim de desnortear o adversário.

Era tal meu ardor bélico e tanto corri, que de súbito me vi sozinho. Os companheiros haviam ficado muito para o lado. Como nosso instinto não tem o senso de linha reta, eu houvera feito um semicírculo e me achava num flanco da linha de batalha.

Mas estava sozinho mesmo?

Não! A meu lado corria um soldado baiano ditatorial. Estava me perseguindo. Ou era eu quem o perseguia?

− Está preso! Berrei resfolegando.
− Não senhor! Quem está preso é você!

Paramos. O fuzil tremia em suas mãos. Ele estava com medo. E eu também.

− Os seus fugiram. Você fugiu. E eu o prendo, pronto!
− Paulista não foge! Nós saímos da trincheira. Atacamos vocês. Vocês não esperaram. Quem está preso é você!

Ficamos indecisos. Eu sem saber se lhe pregava o sabre na barriga ou dava sebo às canelas. Ele, sem optar entre disparar-me um tiro ou disparar a correr.

Quinze minutos de silêncio.

Afinal, cansado, sentei-me no chão.

− Não tente fugir!
− Não fujo porque preciso vigiá-lo.

E sentou-se também, com o fuzil entre as pernas.

− Afinal, quem é o prisioneiro?
− É você!
− É você!
− É você, baiano pau!
− É você, “Polista” besta!
− Se eu não fizesse questão de levá-lo vivo ao P.C., dava-lhe um tiro pelo insulto.
− Você não pode atirar contra a sua guarda. É do regulamento.

Silêncio.

− O que você tem no cantil?
− Água que passarinho não bebe. É da boa, de Parati...
− Me dá um gole.
− Vá lá! O regulamento militar diz pra tratar bem os prisioneiros.
− Uma história. O cantil é meu porque você é presa de guerra e bem assim tudo o que você traz.

Já não se ouvia mais nem um tiro. O combate cessara. Ignorávamos quem levara a melhor, se os constitucionalistas, se os ditatoriais.

Eis que de repente aparece terceira personagem.

− Estou perdido, pensei eu. O tal é deles. Dois contra um!
− Estou perdido, foi o pensamento que brilhou nos olhos do baiano. O tal é “polista”. Dois contra um!
− Estou perdido, falou o tal. Vocês são dois! Por favor, não me prenda! Sou brasileiro como vocês!
− Que você é brasileiro, é certo. Mas o que você é: rebelde ou ditatorial?

O rapaz coçou a cabeça, olhou, olhou e enfim respondeu:

− Ome, eu não sou nada. Nem sei pra que tanto barulho. Só sei que esta revolução não acaba mais e eu quero é voltar para casa.
− Coa a breca, isso é falar certo. E eu também estou doido para voltar ao meu pessoal.
− Eu também, parceiro! Toque! Aceita um gole de cachaça, camarada?

E a pinguinha nacionalizadora confraternizou na mesma boca de cantil três vezes beijada, os heróis do encontro.

Mas depois de esgotado o cantil, o recém-vindo, que mais a cheio entrara na confraternização líquida, ficou valente e gritou:

− Afinal, se vocês querem me prender, leve o diabo! Sou paulista e um paulista vale por dois!

Ouvindo isso, o termômetro de minha coragem subia enquanto que o do baiano descia baixo de zero.

− Então, siô, agora teje preso de verdade! Camarada, vamos levar esse ditatorial pro tenente!

E orgulhosos, de baioneta calada, numa compenetração militarista que faria inveja a um oficial prussiano, marchamos em busca do P.C., levando nosso prisioneiro e a meditar nos comentários e inveja que nosso heroísmo suscitariam...

(Do Almanhaque do Barão de Itararé”, de 1949)

Hylário Corrêa, também Hilário Correia – Nascido em 13 de janeiro de 1910 em Sorocaba, Hilário Correa foi escritor, poeta, jornalista e militante esquerdista. Filho do ferroviário Salvador Corrêa e de Margarida Corrêa.

Foi o primeiro voluntário da Revolução de 1932, levando consigo vários outros colegas. Foi preso em 1935, acusado de participar da Intentona Comunista de 1935. Por volta dessa época compôs o poema “As tecelãs”. Alistou-se como voluntário, aos 16 anos, para o Serviço Militar, aprendendo a pilotar avião. Foi entregador de jornal do Cruzeiro do Sul, passando logo depois para serviços gráficos, redator e revisor. Publicou inúmeros artigos e poesias na imprensa local e em jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, algumas vezes utilizando o pseudônimo de Hortênsio. Formou-se em jornalismo no Rio de Janeiro. Pelo seu idealismo foi diversas vezes preso, sendo companheiro de prisão com outros intelectuais como Monteiro Lobato e Eduardo Maffei.

Como jornalista trabalhou para os jornais Correio Paulistano, A Gazeta Maçônica e Cruzeiro do Sul. Poliglota, falava cerca de oito línguas, sendo tradutor de obras de Victor Hugo. Escreveu ainda o livro de poesias “Vidraça Partida”, raridade hoje em dia.

Não temos a data do seu falecimento.




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