Por Angela Alonso
Foto de Affonso de
Oliveira Mello, de 1894, registra a execução de um rebelde, testemunhada por
oficiais do Exército. O carrasco que mira a câmera é Sebastião Juvêncio.
→ Professora do Departamento de
Sociologia da USP, pesquisadora do Cebrap* Sebastião Juvêncio olha para você.
De frente. Sem pejo, sem remorso. Faz o que é certo, o que é justo. Podia dizer
como Fafafa, no Grande Sertão: Veredas: “Pois, amigo, a gente tem lá meios de
guardar prisioneiro vivo? Se degola é da banda da direita para a esquerda”. Sebastião
é senhor de seu ofício. Praticante experimentado. Tem talvez um laivo de
vingança por tantos de sua cor, tantas vezes, por tantos séculos, no lugar do
debaixo, cuja face a mão esquerda escamoteia. A direita segura decidida o
instrumento de trabalho. A faca parece pequena para o perímetro do pescoço da
vítima, que respira, sabe, um ar que será seu último. Está de joelhos,
paralisado, resignado. Constrito. A câmera obrigava longo imobilismo, dando ao
futuro degolado tempo de imaginar seu destino.
→ Sebastião não teme, não treme,
não fraqueja. Os outros o admiram. São sete, como os pecados. Ali está, dono da
cena, protagonista do ato que está em vias, suspenso por um instante, para que
a modernidade da câmara capte em plenitude a barbárie da sua arte.
→ Degolar é costume e ciência.
Não serve qualquer mão, nem qualquer estômago. Ação precisa, frequente e
longeva. Praticou-se na Confederação dos Tamoios, nos começos do país, e
pratica-se ainda hoje, nos presídios. Toda vez que os brasileiros se imaginam
civilizados juram banir a selvageria. Foi assim no princípio da República,
quando a promessa era expandir trabalho livre, secularizar o Estado, difundir a
educação, urbanizar. A palavra de ordem era progresso.
→ O ímpeto de modernizar foi
contra-arrestado por movimentos armados de contestação, que variaram quanto ao
perfil dos participantes, aos objetivos, às estratégias. Durante toda a
Primeira República, o Estado esteve sob disputa e a perigo. Os setores que o
ocuparam monopolizaram a violência com sucesso apenas relativo. Ora
enquadraram, ora foram enquadrados.
→ Seu domínio sofreu o revide de
movimentos de elites sociais insatisfeitas com a linha do governo e de
mobilizações de estratos sociais baixos contra intervenções em seu modo de
vida. Assim nasceram guerras, revoltas, insurreições e guerrilhas, tentativas
ora de tomar o Estado, ora de escapar ao seu domínio.
→ Tudo longe do mito do povo
pacífico. No andar de cima e no debaixo, nas cidades e nos campos, na caatinga
e nos pampas, a Primeira República foi tempo de briga, na base de espada e
revólver.
→ O avanço tecnológico trouxe
novas formas de viver, diminuiu distâncias, com telégrafo, tipografia,
locomotiva, mas também novos meios de matar, a dinamite, metralhadora ou
canhão.
→ As armas modernas chegaram
devastando, mas nunca substituíram a navalha na carne. Civilização e barbárie
não se sucederam, nem se anularam, se amasiaram.
→ O sangue esguicha do mesmo jeito, de faca ou de tiro.
* Este texto faz parte do
livro-catálogo “Conflitos – Fotografia e Violência Política no Brasil,
1889–1964” (2018), publicação editada pelo Instituto Moreira Salles.
O livro
A exposição “Conflitos –
Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964”*, que já foi apresentada
no Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio de Janeiro, pode ser visitada no IMS
de São Paulo (Avenida Paulista, 2.424, galeria 3) até o dia 29, de terças a
domingos, das 10h às 20h. O livro-catálogo, com 427 páginas, está à venda por
R$ 129,50. Para comprá-lo ou obter outras informações sobre o projeto acesse: conflitos.ims.com.br.
*Livro e exposição em cartaz no
Instituto Moreira Salles apresenta fotos históricas de conflitos entre 1889 e
1964. Rio Grande do Sul aparece em destaque em diversos registros − leia texto
incluído no catálogo sobre imagem icônica da Revolução Federalista de 1893
A prática de degolar os inimigos
não era incomum no sul da América, pelo contrário, tendo sido bastante usada em
combates e batalhas no Rio Grande do Sul, como na Guerra dos Farrapos. Sua presença nesta foi em
escala reduzidíssima, comparada com o que se viveria na Revolução Federalista. A violência
política foi uma prática comum em boa parte do Rio Grande do Sul durante a
República Velha. Na Revolução Federalista de 1893, bem como em sua continuidade
em 1923, as perseguições e os assassinatos de opositores tornaram-se fato comum
em diversas cidades do Estado. Este método punitivo aos perdedores era de
extrema crueldade dada a situação em que encontravam.
Historiadores consideram que a prática era aplicada devida a
duas situações básicas:
Devido ao modelo militar adotado,
que era a cavalaria propriamente dita, de movimentação constante e
relativamente rápida, o que tornava difícil manter tal tipo de prisioneiro, ao
mesmo tempo em que poupava munição.
Meramente de forma punitiva, para infligir terror aos
combatentes inimigos.
No âmbito médico-legal, degola é uma lesão incisa
(produzida por instrumento cortante, como navalha ou bisturi) localizada na
região posterior do pescoço. Não confundir com esgorjamento, que é também uma
lesão incisa localizada no pescoço, porém em sua região anterior.
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