sexta-feira, 27 de julho de 2018

Alegrias do magistério!



Primeiro dia de aula é braço de ferro. Ou você conquista a classe, dobra os provocadores e convence a turma de que vale a pena assistir ao seu curso... ou é melhor voltar para casa por um ano. Os dez ou quinze minutos iniciais são decisivos. Você tem de jogar tudo: charme, humor e informação. Uma noite...

- Professor!

No meio da introdução, o gaiato lá do fundão me interrompeu.

- Eu vou embora. Já vi que o senhor não tem nada para me ensinar.

Menino bem-vestido, fantasiado de contato, o pentelho levava toda a pinta de quem já estava na profissão. Dar um esporro, chutar o herói porta afora... nada disso resolveria a provocação. A classe, muda, esperava a minha reação. Fiz a melhor cara de uai do meu repertório, deixei o giz no quadro-negro, limpei as mãos e, sem olhar para o sabichão, fui me sentar na carteira vaga mais próxima. Gelo geral. Um minuto, dois... eu nem aí. O bzzzzzz começou. Quando a zoeira estava bem forte, eu levantei o braço. Novo silêncio pesado.

- Estou esperando a aula, mestre! Adoro voltar a ser aluno quando aparece alguém que sabe mais do que eu. Vai lá! A classe é sua...

A bola não estava mais comigo. Todo mundo ficou de olho no carinha. Quando senti que ele estava a nocaute, voltei para a frente e toquei a aula. No final, ele veio se desculpar. Tomou a lição, mas não se emendou. O moleque era mesmo muito metido. Fez carreira de aspone (assessor de porra nenhuma), meteu-se a jornalista, entrevistou poderosos, ganhou alguma notoriedade e acabou sendo, por algum tempo, presidente de uma estatal! O que prova apenas que políticos, de um modo geral, são muito mal-informados e têm estômago de aço.

Hienas e governantes têm hábitos alimentares semelhantes.

(Carlos Queiroz Telles, no livro “Tirando de Letra”)

Obs: O escritor e publicitário Carlos Queiroz Telles foi professor de redação publicitária na Faculdade de Comunicação da FAAP.

IDENTIDADE

Cabelos molhados,
sol encharcado,
pele salgada,
vento nos olhos,
areia nos pés.

O corpo sem peso
é nuvem à-toa.
O tempo inexiste.
a vida é uma boa!

Mergulho na água
azul deste céu.
Sou peixe de ar.
Sou ave de mar.

Mergulho em mim mesmo,
silêncio profundo.
Sou eu e sou Deus
de passagem no mundo,
nadando sem rumo
entre conchas e paz.

(Carlos Queiroz Telles; “Sonhos, grilos e paixões”.
São Paulo: Moderna, 1990. p. 38.)

Poeta e dramaturgo, nasceu em São Paulo, em 1936. Na Faculdade de Direito da USP, onde se formou, participou da fundação do Grupo de Teatro Oficina. Trabalhou em publicidade, dedicou-se ao magistério e à criação de programas para televisão. Tem mais de 50 obras editadas e mais de duas dezenas de peças teatrais encenadas no Brasil. No exterior, seus textos "Muro de Arrimo" e "Marly Emboaba" já foram encenados em mais de 20 países. Pelos seus trabalhos, recebeu inúmeros prêmios. Faleceu em 1993.

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