domingo, 29 de julho de 2018

Bolicho sonoro



Bolicho por Berega

(...) Antoninho Fernandes, lá pelos anos 50, era dono de um bolicho no Passo Novo, a meio caminho de São Luiz Gonzaga a São Borja, a meia légua do rio Icamacuã. Eventualmente, e nos meses invernosos de modo especial, Antoninho hospedava viajantes em sua casa.

Propositadamente, e sempre que havia clientela no bolicho, o bolicheiro − estudante de conservatório em Porto Alegre, no seu tempo de aluno do colégio Anchieta −, encaminhava o assunto para o lado da música. Gaitas, violões e violinos desfilavam na conversa. Antoninho tocava − e bem − qualquer desses instrumentos.

Aconteceu mais de uma vez: o viajante, incauto, preso naqueles fundos pela chuva, saudoso de casa, reminiscente à luz dos lampiões de querosene, insinuava:

− Ah, nem me fale em música. Se houvesse uma gaita por aqui...

Antoninho não perdia a vasa:

− Gaita? Não me diga que o senhor toca gaita?

− Bem, não sou um mestre, mas me defendo lindo.

O bolicheiro fazia um sinal com a mão, como diz: espere. Ia à sala contígua e voltava com um acordeão. O viajante, que não tocava coisa nenhuma (salvo alguma raríssima exceção), ficava cheio de dedos:

− Quer dizer, eu toquei quando guri. Pra lhe ser franco e branco, hoje toco muito pouco. Melhor dito, não toco mais nada.

Antoninho guardava a gaita. Mas o viajante não se conformava com a perdida:

− Agora tem uma, seu Antônio: violão é comigo mesmo. O senhor sabe, é um instrumento mais leve, nem sei como fui esquecer do meu nesta viagem.

− Violão? Pois o senhor toca violão?

Ia lá dentro e trazia um violão. Ele mesmo o afinava em dois tempos e o oferecia ao papudo. Este, já sentindo a estrepada, tomava o instrumento, arranjava uma desculpa para não tocar:

− Violão é como mulher, seu Antônio. Eu só toco no meu, o senhor não leve a mal, mas mania é mania.

Para arrematar chegava ao lance final:

− Na verdade o que eu toco mesmo é violino. Só peças clássicas. (Impossível que aquele bolicheiro grosso tivesse violino em casa.)

Tinha. E lá vinha seu Antoninho com seu violino

− Esteja a gosto. Eu também sou encambichado por violino.

Era aí que o viajante se desesperava, enquanto a gauchada presente − que já conhecia a história −, se mijava de rir.

− Seu Antoninho, o que eu toco mesmo é rádio, e assim mesmo mal e mal. Quando é que eu ia adivinhar que o senhor tivesse gaita, violão e violino em casa, aqui neste fundão de mundo? Só falta que o senhor tenha um piano de cauda ali na sala.

E o Antoninho, rindo por dentro, mas com a cara mais séria do que guri mijado:

− Não, piano eu não tenho. Por que, o senhor toca piano?

− Seu Antoninho, pelo amor de Deus, eu já lhe confessei que não toco bosta nenhuma! − E encalistrado: − Me consiga uma vela que eu já vou dormir.

O bolicheiro lhe alcançava a vela. Daquelas antigas, feitas em formas de taquara.

******

(Do livro “Rapa de Tacho Causos gauchescos”,
Apparicio Silva Rillo)


Apparício Silva Rillo foi um poeta, folclorista e escritor brasileiro. Apesar de nascido em Porto Alegre, fixou residência em São Borja. Publicou artigos e ensaios na imprensa, livros de contos e de poesia e peças de teatro.

Nascimento: 8 de agosto de 1931, Porto Alegre, Rio Grande do Sul; falecimento: 23 de junho de 1995, São Borja, Rio Grande do Sul;

Livros: Rapa de tacho: causos gauchescos I e II, Clássicos do regionalismo gaúcho

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