Bolicho por Berega
(...) Antoninho Fernandes, lá pelos
anos 50, era dono de um bolicho no Passo Novo, a meio caminho de São Luiz
Gonzaga a São Borja, a meia légua do rio Icamacuã. Eventualmente, e nos meses
invernosos de modo especial, Antoninho hospedava viajantes em sua casa.
Propositadamente, e sempre que havia
clientela no bolicho, o bolicheiro − estudante de conservatório em Porto Alegre , no seu
tempo de aluno do colégio Anchieta −, encaminhava o assunto para o lado da
música. Gaitas, violões e violinos desfilavam na conversa. Antoninho tocava − e
bem − qualquer desses instrumentos.
Aconteceu mais de uma vez: o
viajante, incauto, preso naqueles fundos pela chuva, saudoso de casa,
reminiscente à luz dos lampiões de querosene, insinuava:
− Ah, nem me
fale em música. Se
houvesse uma gaita por aqui...
Antoninho
não perdia a vasa:
− Gaita? Não
me diga que o senhor toca gaita?
− Bem, não
sou um mestre, mas me defendo lindo.
O bolicheiro fazia um sinal com a
mão, como diz: espere. Ia à sala contígua e voltava com um acordeão. O
viajante, que não tocava coisa nenhuma (salvo alguma raríssima exceção), ficava
cheio de dedos:
− Quer dizer, eu toquei quando guri.
Pra lhe ser franco e branco, hoje toco muito pouco. Melhor dito, não toco mais
nada.
Antoninho
guardava a gaita. Mas o viajante não se conformava com a perdida:
− Agora tem uma, seu Antônio: violão
é comigo mesmo. O senhor sabe, é um instrumento mais leve, nem sei como fui
esquecer do meu nesta viagem.
− Violão?
Pois o senhor toca violão?
Ia lá dentro e trazia um violão. Ele
mesmo o afinava em dois tempos e o oferecia ao papudo. Este, já sentindo a
estrepada, tomava o instrumento, arranjava uma desculpa para não tocar:
− Violão é como mulher, seu Antônio.
Eu só toco no meu, o senhor não leve a mal, mas mania é mania.
Para
arrematar chegava ao lance final:
− Na verdade o que eu toco mesmo é
violino. Só peças clássicas. (Impossível que aquele bolicheiro grosso tivesse
violino em casa.)
Tinha. E lá vinha seu Antoninho com
seu violino
− Esteja a
gosto. Eu também sou encambichado por violino.
Era aí que o viajante se desesperava,
enquanto a gauchada presente − que já conhecia a história −, se mijava de rir.
− Seu Antoninho, o que eu toco mesmo
é rádio, e assim mesmo mal e mal. Quando é que eu ia adivinhar que o senhor
tivesse gaita, violão e violino em casa, aqui neste fundão de mundo? Só falta
que o senhor tenha um piano de cauda ali na sala.
E o
Antoninho, rindo por dentro, mas com a cara mais séria do que guri mijado:
− Não, piano
eu não tenho. Por que, o senhor toca piano?
− Seu Antoninho, pelo amor de Deus,
eu já lhe confessei que não toco bosta nenhuma! − E encalistrado: − Me consiga
uma vela que eu já vou dormir.
O bolicheiro
lhe alcançava a vela. Daquelas antigas, feitas em formas de taquara.
******
(Do livro “Rapa de
Tacho Causos gauchescos”,
Apparicio Silva
Rillo)
Apparício Silva Rillo foi um
poeta, folclorista e escritor brasileiro. Apesar de nascido em Porto Alegre , fixou
residência em São
Borja. Publicou artigos e ensaios na imprensa, livros de
contos e de poesia e peças de teatro.
Nascimento:
8 de agosto de 1931, Porto Alegre,
Rio Grande do Sul; falecimento:
23 de junho de 1995, São Borja,
Rio Grande do Sul;
Livros:
Rapa de
tacho: causos gauchescos I e II, Clássicos do
regionalismo gaúcho.
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